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Por Antonio Teixeira*

Em 1958 corria a fama de que quando se tratava de Copa do Mundo, o jogador brasileiro era frouxo. Dizia-se que nos faltava fibra, que não tínhamos firmeza para os jogos decisivos, sendo frequentes, da parte dos jogadores, as queixas de dor de ventre na véspera das grandes partidas, assim como sintomas de insônia, ansiedade e nervosismo. A um mal disfarçado racismo, que atribuía essa situação à debilidade de nossa composição étnica, pouco a pouco se substituiria o ensejo por uma observação mais séria, supostamente apoiada, por sua vez, numa psicologia que se pretendia científica por se pautar em avaliações numéricas. Nesse contexto, se inauguraria o primeiro mercado para o tratamento mental de nosso fracasso esportivo, dando ensejo, por assim dizer, a uma saudementalização do escrete canarinho. Surgiria, assim, uma figura até então inusitada na comissão técnica da seleção brasileira: o psicólogo – representado por João Carvalhaes – chamado para diagnosticar e quem sabe remediar a situação, trazendo consigo sua bateria de testes de equilíbrio emocional e aptidão cognitiva.

Embora sejam escassas as passagens em que Rui Castro a ele se refere (elas se limitam a 3 páginas, para ser exato), duas informações a seu respeito merecem nossa atenção. Sabemos, em primeiro lugar, que a avaliação psicológica do jogador Garrincha foi absolutamente deplorável, a começar pelo preenchimento de sua ficha: ele escrevera “atreta” no espaço reservado para indicar o nome de sua profissão. No teste que lhe foi aplicado, Garrincha não obteve mais que 38 pontos num escore de 128; em termos comparativos, ele não estaria habilitado sequer para trabalhar como motorista de ônibus. Sabemos igualmente, em segundo lugar, que um certo Edson Arantes do Nascimento tampouco se qualificaria na avaliação de Carvalhaes, embora tenha se saído melhor do que Garrincha. Fez apenas 68 pontos no mesmo teste, e foi considerado infantil, destituído de agressividade e sem disciplina. Mas eis que a dupla formada por Pelé e Garrincha, ambos considerados inaptos a jogar como titulares pelo avaliador psicológico da seleção brasileira, inauguraria uma das mais grandiosas eras da seleção brasileira: a equipe jamais perderia uma só partida com os dois jogadores em campo, que nos deixaram cenas de jogadas absolutamente marcantes, tão memoráveis, para quem as viu, quanto a contemplação de uma tela de Matisse. O desenrolar dos fatos mostrou quem de fatos eles eram, avaliando assim o avaliador e fazendo com que ele fosse mantido, para a felicidade geral da nação, por longo tempo fora do cenário futebolístico.

Seria prazeroso lembrar-se da figura do avaliador, se ela se mantivesse congelada na imagem derrisória e cômica desse pobre João Carvalhaes. Mas nos preocupa hoje perceber, meio século após esse feliz episódio, que tal figura volta ao panorama do mercado mental e assume formas cada vez mais inquietantes. O avaliador hoje retorna em todos os níveis sobre a cena, trazendo sisudo e triunfante suas réguas e baterias de testes. Não é mais suficiente rir do avaliador, que de funcionário inepto de uma falsa expectativa agora parece exercer uma função condizente com o modo de organização que a sociedade atualmente exibe, na qual se estrutura o mercado da avaliação mental. Cabe-nos antes fazer o diagnóstico da situação da qual ele é o sintoma, para examinar de que modo se pode a ele responder.

É Canguilhem quem nos esclarece que a psicologia, ao se ofertar como uma teoria de avaliação das habilidades no mercado do trabalho, a partir, sobretudo, da revolução industrial, valeu-se de sua constituição, no século XIX, como disciplina do comportamento humano. Em sua composição se solidarizam uma biologia organizada na forma de uma teoria geral das relações entre organismos e meio, apoiada na dissolução da crença criacionista num reino humano distinto, assim como uma ideologia dos valores da sociedade industrial agora voltada para o aspecto instrumental da habilidade humana. O valor dado ao produto da competência técnica aumenta à medida que decresce o antigo valor atribuído à sabedoria. Com o igualitarismo difundido a partir do ideário da revolução francesa, a psicologia se afirma na forma de uma prática da expertise. Sua função é agora determinar objetivamente a capacidade técnica dos indivíduos, uma vez excluídos os valores atribuídos à casta, ao privilégio social, assim como a função antes enaltecida da atividade do pensamento.

Mas sejam quais forem suas motivações ideológicas, o que há de mais criticável na psicologia, assim formulada enquanto pretensa ciência das habilidades e dos comportamentos, diz menos respeito ao problema de sua limitação técnica do que à ausência de uma formulação clara do seu projeto instaurador. Ao aceitar o papel de uma fornecedora de critérios de aptidão, denuncia Canguilhem, a psicologia esquece-se de situar seu comportamento específico com relação às circunstâncias históricas e aos meios sociais nos quais é solicitada a propor seus serviços. Ela quer simplesmente se oferecer como instrumento para o mercado de seleção de trabalho, sem interrogar para quê ou para quem ela está funcionando. E se ela recusa como inútil qualquer questionamento filosófico acerca desse propósito de tomar a habilidade como uma característica a definir os critérios de avaliação, é porque a ideia da utilidade lhe serve de esteio. Sob a condição, é claro, de que essa ideia de utilidade seja extraída, de modo necessariamente inexplícito, da definição instrumental do homem.

Não é supérfluo frisar o caráter “necessariamente inexplícito” dessa definição instrumental do homem, a considerar que tal ausência de explicitação aqui não decorre de uma insuficiência contingente. Trata-se antes, prossegue Canguilhem, de um princípio que não pode, por razões estruturais, ser fornecido explicitamente: esse princípio somente funciona se permanecer ausente de qualquer formulação. Pois é a própria noção instrumental do homem, como meio de utilidade, que se encontra estruturalmente carente de uma finalidade que a justifique: os fins alcançados instrumentalmente se tornam, por sua vez, instrumentos para outra finalidade que os transcendem, sem que se possa definir, no interior desse circuito instrumental, qual seria a finalidade última. É, por conseguinte, necessário, para que o circuito instrumental continue a funcionar, que não se interrogue quanto a sua finalidade; sua exposição colocaria em suspenso o próprio sentido de instrumento em torno do qual gira esse circuito.

Inútil, portanto, perguntar, como o faz Canguilhem, pelo que leva os psicólogos a se ofertarem, no mercado da avaliação mental, como instrumentos de uma ambição de tratar o homem como instrumento. Tal pergunta coloca a perder o próprio sentido da prática de avaliação. Para que a oferta da avaliação continue, é preciso que não se pense nisso. Diríamos mais: o mercado da avaliação mental depende que não se pense, preferencialmente. É próprio da prática da avaliação gerar uma radical demissão do pensamento, visto que o avaliador se encontra normalmente dispensado de interrogar quanto à natureza mesma daquilo cuja avaliação ele oferta no mercado. Cabe a ele somente encontrar o equivalente numérico que lhe possa dar a medida do que se propõe avaliar, pouco lhe importando a razão de ser ou a finalidade do que está sendo avaliado. O que está em questão, na transformação reificante dos homens em instrumento ou coisa útil, é justamente deles fazer algo de comportamento previsível e funcionamento calculável. Nesse sentido, a ideia de se tomar a massa dos indivíduos como um conjunto das coisas instrumentais igualmente requer a suspensão de todo questionamento singular cujo desfecho não admite cálculo estatístico.

Se Lacan, já há muito, havia denunciado a inconsistência de todo projeto que busca tratar o psiquismo nos termos mecânicos de uma causalidade física (sua “Proposta sobre a causalidade psíquica” data de 1946), ele não tardaria tampouco a denunciar a falácia de reificação ou coisificação do sujeito, em sua “Intervention sur le transfert”. Todo esforço da psicologia em objetivar o indivíduo é infundado, escreveria ele, em 1951, por desconhecer que o que conta são as determinações dialéticas do sujeito: Dora, diante do seu pai, é visivelmente distinta de Dora, diante da Sra. K, e assim por diante.

Não distante de Lacan, S. Gould por sua vez reconheceria, nessa mesma falácia reificante, a tentação de converter conceitos abstratos, usados para designar faculdades mentais, em entidades autônomas : quando, por exemplo, tomamos a palavra ‘inteligência’, “esse extraordinariamente complexo e multifacetado conjunto de capacidades humanas”, e mediante tal estenograma dela fazemos uma coisa unitária, sentimo-nos autorizados a criar procedimentos standard de uma ciência que virtualmente dita a localização e o substrato físico que devem ser procurados para ela. Posto que o cérebro é o lugar da mentalidade, a inteligência deve ali residir. Temos então o cérebro de Einstein, sobre o qual R. Barthes escreveria um provocante verbete, lembrando que, para a ideologia, o super homem sempre comporta alguma dose de reificação. Órgão antológico que se tornou uma verdadeira peça de museu, o cérebro de Einstein se veria disputado por dois hospitais, como se ali estivesse um aparelho insólito, cujo mecanismo poder-se-ia enfim desmontar. Ao cérebro se pede que pense na relatividade, mas sem se indagar o que significa “pensar em…”, como se o cérebro produzisse pensamentos do mesmo modo que o moinho produz a farinha.

Seja como for, não é preciso ser especialista em Economia Política para reconhecer, nesse processo de reificação instrumental que converte sujeitos em produtos substanciais mensuráveis, prontos para serem lançados no mercado, um procedimento organicamente solidário do modo de organização da produção capitalista. É patente, nesse esforço de estabelecer critérios de equivalência formal, o processo que se realiza com os objetos reduzidos à forma de mercadoria. Como bem viu Lukacs, a suposição coisificante da equivalência é o verdadeiro princípio que governa esse modo de produção. Se a prática de avaliação psicológica encontra finalmente ali seu mercado, é porque, com a moderna análise do processo de trabalho, a mecanização racional estende seus direitos à própria alma do trabalhador, visando “facilitar sua integração em sistemas racionais especializados e sua redução em conceitos estatisticamente viáveis”.

Mas, embora o princípio inexplícito da avaliação esteja dado na ideia de lançar no mercado o produto homem enquanto valor mensurável de utensílio, é preciso igualmente enfatizar, junto a Canguilhem, que a utilização do homem-utensílio, por ela mesma, não é fato do psicólogo avaliador. Esse mercado é constituído por aqueles que lhe demandam relatórios ou diagnósticos, nos diversos campos em que o avaliador oferta seus serviços. Por esse motivo, prossegue Canguilhem, o avaliador opera, na maior parte das vezes, como um prático profissional cuja ciência é inteiramente inspirada pela pesquisa de leis de adaptação a um meio sócio-técnico – e não a um meio natural – o que sempre confere a suas operações de medida uma significação de expertise. Se quisermos, contudo, efetivamente esclarecer o que vem a ser o meio sócio-técnico sobre o qual hoje se constitui o mercado do mental, não podemos deixar de observar que nossa realidade já se desloca consideravelmente da vertente utilitária descrita por Canguilhem, em que vigorava a definição instrumental do sujeito concebido como valor de uso.

Ao que tudo indica, o sujeito funcional de nossa atual sociedade de consumo, encontra-se determinado por um modo de relação ao gozo que ultrapassa os limites de sua determinação utilitária. Isso se dá na medida em que o discurso do capitalismo não somente reduziu o valor de uso a um simples meio de circulação do capital, como também fez de sua própria finalidade – a circulação do capital na forma de uma contínua produção de mais valia – um movimento sem fim, consagrado a se auto-reproduzir indefinidamente. É a mais-valia, e não o valor de uso, que nesse nível se torna o princípio de organização da economia , conduzindo, assim, à produção inesgotável dos objetos do gozo que por si só excede a toda forma de contenção subjetiva, cuja contrapartida seria a constituição de um sujeito por sua vez determinado por uma relação de obrigatoriedade ao gozo e ao consumo.

Mas seja qual for o valor explicativo da descrição acima, ela ainda deixa sem esclarecimento o próprio princípio dessa imposição de gozo sobre o qual se organiza tal movimento. É provável que um pesquisador, quem sabe?, do início do século XXII, num momento se indague, não sem uma certa perplexidade, como esse fenômeno social foi possível, como foi que, nesse período, uma sociedade pôde estabelecer como modelo homogêneo, à grande massa de seres falantes, essa obrigação de gozo que se colocou a serviço de uma ideologia do consumo. De que maneira – perguntar-se-ia nosso historiador imaginário – terá sido possível socialmente impor o contraditório dever de ser feliz, contraditório do momento em que toda sociedade sempre dependeu, para se constituir, da renúncia de satisfação à qual ela obriga a seus membros? Como pôde acontecer que o supereu de nossa época, no lugar de exigir a abdicação ao gozo, como era o caso no tempo de Freud, tenha assumido a forma do imperativo “goze!”, estampado na publicidade de produtos safe sex do início do século XXI? Em que sentido, enfim, se pôde conceber essa paradoxal obrigatoriedade ao gozo, que em nosso tempo se desdobra no não menos paradoxal dever de ser feliz?

Responderíamos, então, ao nosso interlocutor fictício, que por mais contraditória que pareça a articulação, acima indicada, no binômio dever-felicidade, a condição de obrigatoriedade ao gozo não é, na realidade, um fenômeno tão impensável assim. Podemos mesmo reconhecer certo tipo de obrigatoriedade ao gozo, no que tange à satisfação pulsional, no sentido referido por Lacan, em Televisão, de que todos somos, no nível acéfalo da pulsão, senão obrigatoriamente felizes, ao menos inevitavelmente satisfeitos: a pulsão se satisfaz invariavelmente, mesmo quando essa satisfação é percebida como desprazer ou como prazer culpado, ou indevido. Mas, ainda que a satisfação pulsional sempre ocorra, sejam quais forem os desvios que se possam colocar no seu circuito, a dimensão daquilo que própria – ou impropriamente – chamamos de felicidade comporta, por outro lado, um fator de contingência que se distancia dessa necessidade quase mecânica da descarga pulsional.

Essa contingência irredutível que levava Freud a dizer, em “O mal estar na cultura”, que “para a felicidade, não há nada preparado, nem no macrocosmo nem no microcosmo”, confirma-se filologicamente no fato, observado por J. Lacan, de que em quase todas as línguas a noção de felicidade apresenta-se nos termos de um encontro fortuito. Os lexemas tykhe, augurum, bonheur, Glück, Gelük, happiness, happen estão ali para atestar, na grande pluralidade das línguas, que não existe, para usarmos a linguagem da cibernética, nenhuma programação simbólica que possa organizar, de maneira previsível, a experiência da felicidade humana, assim como não há, no que diz respeito à parceria sexual, nenhum protocolo de condutas que possam conduzir a uma conjugalidade feliz.

Do mesmo modo, portanto, que não se pode delimitar o desejo como objeto de um enunciado no discurso do sujeito, posto que o desejo se coloca como causa no nível de sua própria enunciação, a felicidade não pode tampouco corresponder a um objeto do qual se poderia apropriar discursivamente. Distintamente de um produto visado no plano de sua fabricação, a felicidade, para retomar a feliz formulação extraída de A. Huxley por Sérgio Mattos, seria antes comparável ao carvão coke, no sentido de algo que se obtém como subproduto enquanto se está fazendo outra coisa. Se nos servimos dessa definição, é porque ela tem a vantagem de preservar a alteridade da felicidade com relação ao sujeito, ao mesmo tempo em que lhe oferta, na contingência do encontro, seu lugar como virtualidade indispensável.

É preciso, portanto, retornar ao nível acéfalo da pulsão, a montante, se assim se pode dizer, de todas as coordenadas simbólicas que presidem à constituição do sujeito desejante, para que se possa efetivamente alcançar essa necessidade mecânica da descarga pulsional. É apenas a partir dessa dimensão, por assim dizer, fisicalista do sujeito – dimensão em que o sujeito se reduz a uma fonte de constante tensão e descarga pulsional – que se pode falar numa obrigatoriedade de ser feliz, bem como fazer da felicidade um bem programável. Disso deriva, ao que suspeitamos, a necessidade de se proceder a uma nova espécie de “coisificação” do sujeito, do momento em que somente no nível mecânico das coisas se pode cercar o comportamento absolutamente previsível, ao abrigo do encontro e da contingência.

Não é, aliás, casual que a psiquiatria, que hoje se arvora a ofertar, no mercado do mental, o bem estar psíquico como produto acessível mediante protocolos farmacêuticos e guidelines comportamentais, tenha abandonado a teoria do sentido da qual ela podia se valer, no século passado, em sua vertente fenomenológica, para pensar o indivíduo nos moldes de um aparelho neuronal. Se ela hoje tenta organizar, de forma irrefutável, a convicção de que o psíquico é o cerebral, é porque precisa definir o pensamento como uma função localizável no cérebro e, assim, conceber o mental nos termos de uma necessidade comparável à que se encontra no plano da causalidade física. Tudo se joga na possibilidade de se reduzir o homem ao cérebro, aqui pensado como uma máquina de tratar informações cujas operações seriam, em princípio, programáveis.

Daí se infere por que o corpo vem receber especial atenção na época de imposição da felicidade calculável: queiramos ou não, a corporeidade é a dimensão que melhor se presta a oferecer um suporte para se pensar o sujeito nos termos de um aparelho cujo funcionamento abrigaria uma necessidade previsível. Para Descartes, se os animais nada mais eram do que máquinas que respondiam a estimulações mecânicas advindas do mundo externo, os homens destes se distinguiam por conter a substância incorpórea da alma, enquanto princípio imaterial que governava suas ações. Mas não tardaria muito para que o médico filósofo Julien Offray de La Mettrie publicasse, em 1748 – ou seja, 100 anos exatos após o “Tratado do Homem” de R. Descartes –, a polêmica obra “O homem-máquina”, considerada como o primeiro ensaio propriamente moderno de uma antropologia estritamente mecanicista. Contrariamente ao que pensava Descartes, La Mettrie consideraria a hipótese da alma uma idealização supérflua que em nada elucida o funcionamento do comportamento humano. Aos olhos de La Mettrie, os homens em nada se diferenciam dos animais, nem mesmo no que diz respeito a seu modo de agir, que em vários aspectos me mostra mais desprezível do que o comportamento da maioria dos primatas.

Ainda que pela alma se buscasse assegurar um princípio imaterial de exceção a distinguir o homem dos demais seres vivos, a supressão materialista dessa hipótese pelo pensamento científico moderno, longe de idealizar a percepção de nossa realidade corpórea, antes terminaria por produzir o seu aviltamento. O corpo deixa de ser o sacrário que até então encerrava, qual uma relíquia, a substância agalmática da alma, para ser considerado apenas enquanto disponibilidade perecível de satisfação. É por isso que devemos nos referir ao personagem libertino de Sade, e não ao Don Juan de Molière, se quisermos pensar as consequências dessa percepção moderna do corpo. Pois embora Don Juan pareça se aproximar do libertino moderno, ao romper com as normas sociais de retenção do prazer, ele ainda permanece cativo do discurso pré-científico que confere ao corpo um poder narrativo, revestindo-o de imagens metafóricas e virtudes alusivas. Afora isso, por mais que se multipliquem suas oportunidades de gozo, Don Juan ainda depende da perspectiva do encontro que, como sabemos, é intolerável a uma visão fisicalista do sujeito.

Totalmente diverso é o modo de percepção do corpo sadeano, que se dá a ler tal como a ciência o descreve: um dado mecânico, material, desprovido de virtudes narrativas. Só existem a vibração mecânica e a secreção material dos humores no gozo do libertino, para quem o corpo só vale como uma multiplicidade de órgãos, sem unidade interior nem transcendência. Do mesmo modo que um geólogo analisa e esquadrinha a Serra do Curral, para nela definir as melhores possibilidades de extração de minério de ferro, sem se perguntar pelo sentido que a montanha pode ter para um belorizontino, o corpo sadeano será exposto, recortado e inventariado segundo uma combinatória significante que dele visa extrair o máximo de gozo. O corpo nada tem a dizer: ele nada mais é do que uma maquinaria a ser ordenada conforme o programa estabelecido pelo cientista libertino.

Valor sem valor, esse corpo moderno, que Sade antecipa, somente se presta, em nossa contemporaneidade, à expansão quantitativa da função instrumental de gozo a qual nos obriga o dever de ser feliz. A imprensa ocidental que eloquentemente exibe a repressão sexual nos países fundamentalistas, em contraponto com a liberdade sexual que nossa sociedade supostamente conquistou, omite propositalmente que nossa sociedade, desprovida de crença, embora tenha retirado do sexo a imposição moral de sua contenção, nem por isso o desmoralizou. A moral agora se manifesta, conforme enfatiza Alain Badiou, na forma do hedonismo licencioso, no modo do imperativo de gozo que se vê tanto na manipulação desenfreada dos corpos pelas cirurgias plásticas, quanto nas exortações pornográficas que nos impõem uma coerção tão intensa quanto aquela que antigamente nos impedia de gozar.

O que dizer, então, a propósito da posição a ser adotada pela psicanálise, face a essa percepção contemporânea do sujeito referido a seu suporte corporal, reduzido a seu valor de consumo e de gozo? Certamente, uma série interminável de coisas, impossível de listar aqui. Seria talvez mais importante situar, para não nos perdemos num mar de propostas, o que a psicanálise não deve dizer. A psicanálise, em nosso entender, não deve, sobretudo, exortar a civilização a uma retomada do sentido, para além do gozo, através de uma revalorização anacrônica das representações emblemáticas do corpo, como também não deve re-introduzir nada que se assemelhe a um fator equivalente à hipótese da alma como princípio de transcendência da realidade corporal onde se abrigaria a hipótese do sujeito para além do corpo. A procura da felicidade não deve, tampouco, constituir para a psicanálise um guia de conduta, até porque a questão da felicidade, tal como ela hoje se apresenta, não se refere a nada, a não ser, como diz V. Safatle, a uma série de imagens impostas pelo sistema de reprodução de formas de vida sob a égide do capitalismo. Seria então o caso de dizer, segundo sugere V. Safatle, que a função da psicanálise consiste em reconduzir a subjetivação corporal do sexo e do gozo a um regime de indiferença com relação às normas de felicidade da cultura? Talvez sim, por que não? Pois é somente nos mantendo indiferentes em relação ao sexo e ao corpo, no sentido não de desconsiderá-los, mas de não nos valermos de nenhum discurso normativo sobre eles, que poderemos lançar, finalmente, a possibilidade de agenciar formas singulares que, como tais, não servirão de modelo nem de medida à realização de ninguém.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BADIOU, A. (2005) Le siècle. Paris : Seuil.
BARTHES, R. (1957). Mythologies. Paris: Seuil.
CANGUILHEM, G. (1966) Qu’est-ce que la Psychologie ?. Cahiers pour l’Analyse 1/2, 77-86.
CASTRO, R. (1996) A estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha. S.P.: Companhia das Letras.
FOUCAULT, M. (1977). “L’Œil du pouvoir”, in BENTHAM, J. Le panoptique, Paris, P. Belfond.
FREUD, S. (1974) O mal-estar na civilização. In __, Obras completas, Standard, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago.
GOULD, S. (1981). The mismeasure of man. N.Y.: W. Norton & Co.
LA METTRIE, J. (1981) L’Homme-machine. Paris: Denoel.
LACAN, J. (1966). Écrits. Paris: Seuil.
LACAN, J. (1973). Le séminaire, livre XX – Encore. Paris: Seuil.
LACAN, J. (1974). Télévision. Paris: Seuil.
LUKÁCS, G. (1971) History and Class Consciousness. London: Merlin Press Ltd.
TEIXEIRA, A (Relator), “O dever de ser feliz”, in FUENTES, M. & VERAS, M. (2008). Felicidade e sintoma: ensaios para uma psicanálise no século XXI. São Paulo: Corrupio.

*Antônio Teixeira é psicanalista membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, psiquiatra, membro conselheiro (Advisory board) da International Society of Psychoanalysis and Philosophy, professor da UFMG e colunista do Blog da Subversos. Gilson Iannini tem formação específica em psicanálise e é professor-adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Práticas da Letra é uma Unidade de pesquisa sobre escritura e leitura na prática psicanalítica. Essa pesquisa se insere no Instituto de Clínica Psicanalítica (ICP) do Campo Freudiano.

A partir de algumas pontuações de J. A. Miller, nossa pesquisa procura explorar a função do escrito e da leitura no ensino de J. Lacan e alguns outros autores da literatura:

“A psicanálise não é apenas questão de escuta, listening, ela é também questão de leitura, reading. No campo da linguagem, sem dúvida, a psicanálise toma seu ponto de partida da função da palavra, mas ela se refere à escritura. Há uma distância entre falar e escrever, speaking and writing. É nesta distância que opera a psicanálise, é esta diferença que a psicanálise explora”. (J. A. Miller, Ler um sintoma)

Neste espaço aberto pela SUBVERSOS em conexão com Práticas da Letra, iremos publicar alguns textos recolhidos de nossa bibliografia, além de autores convidados e breves notícias de nossa pesquisa.

Inauguramos o espaço com um texto de Lucia Castello Branco, psicanalista e escritora, professora titular da Faculdade de Letras da UFMG e autora de livros de psicanálise e literatura.

No texto – A paixão do ler: a leitura no “amor em fracasso” – apresentado por Lúcia na Unidade de pesquisa, ela nos propõe pensar “de que maneira a leitura, tal como proposta por Blanchot, inicialmente, e por Llansol, como legência, pode nos fazer avançar nessa operação do “saber em fracasso”. A partir desta proposta Lucia nos leva ao seminário 20 de Lacan, pela mão de Espinosa e da escritora Maria Gabriela, até à função do amor, do ler e escrever.

Ana Lucia Lutterbach – Psicanalista membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, autora do livro Patu – a mulher abismada, publicado pela editora Subversos e coordenadora do unidade de pesquisa Práticas da Letra.

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As Meninas – Diego Velasquez – 1656

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A paixão do ler:

a leitura no “amor em fracasso”

Por Lucia Castello Branco

Vereis que, pouco a pouco, as letras vão rolar do
próprio nome:                                                     
amor sem m.
amor sem o.
amor sem r.                                                         
amor sem a.                                                                                       

fica o silêncio em que vos dareis uma à outra, ponto
final da chama.                                                                        

Maria Gabriela Llansol

Começo pelo silêncio, ponto final da chama. Começo por ela, em seu ponto final: a chama. Chamo-a por seu nome: Maria Gabriela Llansol. Aprendi com ela, que aprendeu com Nietzsche, que a pergunta “quem sou” é a pergunta do escravo. “Quem me chama” é a pergunta do homem livre.

Quem me chama aqui, hoje? Ana me chamou, eu vim, e desde já agradeço o convite que ela me fez, pois ele me levou, creio, mais adiante. Pensei, a princípio, que era a psicanálise o que me chamava. Depois, mais adiante, pensei que era a literatura o que me chamava. Agora já não sei. Pois, por razões particulares que não vale aqui explicitar, pus-me a reler, há quinze dias, um texto que leio desde muito tempo, desde que li, pela primeira vez, o texto dos místicos medievais – Santa Teresa de Ávila, em primeiro lugar, São Juan de la Cruz, um pouco depois, e Hadewich D´Anvers, mais tarde – e de místicos mais recentes, como Santa Teresa de Lisieux. Trata-se do Cântico dos Cânticos, texto bíblico que terminou por se constituir como um dos paradigmas do discurso amoroso no Ocidente.

Em 1992, fui a Portugal pela primeira vez, e ali permaneci por seis meses, fazendo meu primeiro estágio de pós-doutorado, na Universidade Nova de Lisboa. O que me levou ali foi um projeto sobre o texto místico de freiras portuguesas do século XVIII, supervisionado pela poeta e professora Ana Hatherly. Acontece que em Portugal, enquanto eu esperava pela microfilmagem de alguns manuscritos – nessa época, o sistema de digitalização dos documentos ainda não havia começado, na seção dos “reservados” da Biblioteca Nacional de Lisboa –, decidi ler outras mulheres, autoras contemporâneas portuguesas que eu ainda não conhecia. Foi assim que cheguei ao texto de Maria Gabriela Llansol, que me foi apresentado por uma outra escritora, de quem eu havia me tornado amiga, ainda no Brasil: Teolinda Gersão. Teolinda leu minha tese de doutorado e me disse que eu devia conhecer o texto de Llansol, pois havia escrito uma tese sobre esse texto, sem conhecê-lo.

Devo confessar para vocês que, secretamente, eu sempre soubera que minha tese sofria de um defeito, um defeito grave: a teoria avançava ali mais que os objetos literários que eu havia escolhido para sustentá-la. Ou seja: não havia, a meu ver, texto que demonstrasse a teoria sobre a “escrita feminina” que eu havia construído. É verdade que isso, de alguma maneira, me excitava, pois era como se eu tivesse chegado, de um só golpe, à formulação lacaniana “A Mulher não existe”. Mas, ainda assim, eu supunha que, em algum lugar, haveria esse texto que me permitiria demonstrar, literariamente, esse aforismo. Read More

O texto a seguir é a transcrição de uma fala não revisada mas gentilmente cedida pelo autor, realizada durante a mesa preparatória das XXI Jornadas Clínicas da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio (EBP-Rio) e do Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro (ICP-RJ) chamada Mulheres de hoje – excessos e sutiliezas do sintoma na psicanálise que ocorreu dia 5 de outubro no RDC da PUC-Rio.

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Pablo Picasso – Les Demoiselles d’Avignon, 1907

Por Rodrigo Lyra*

Boa tarde. Gostaria de começar agradecendo ao coordenador da mesa, Guilherme Gutman, e ao Departamento de Piscologia da PUC-Rio pelo convite. Na verdade, agradeço não somente o convite, mas por terem aceitado o pedido feito por nós da coordenação das XXI Jornadas Clínicas da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio (EBP-Rio) e do Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro (ICP-RJ) que consistiu em organizar uma mesa preparatória para esse evento aqui na PUC. Assim, além de agradecer o convite feito pelo Departamento e, mais especialmente, aos colegas de pesquisa do Prof. Marcus André Vieira, aproveito para também convidá-los a participarem das XXI Jornadas Clínicas da EBP e do ICP. Para que isso não fique muito abstrato, queria apresentar a vocês o tema da Jornada e compartilhar um pouco do que pensamos, um pouco do que a comissão organizadora pensou quando escolheu esse tema e, mais especialmente, esse subtítulo, isto é, o que justifica uma Jornada chamada Horizontes do Feminino – excessos e sutilezas. Vamos tentar, se for possível, falar dos ditos ‘excessos e sutilezas’ e quem sabe tentar chegar na questão do sintoma que seria, mais propriamente dito, o tema de hoje.

Freud e o feminino

Eu pensei retomar a questão lá de trás pois, a princípio, segundo a teorização freudiana mais clássica, falar em excesso com relação ao feminino não é nada evidente. A princípio, poderíamos dizer que existem em Freud duas linhas de reflexão sobre o feminino. Existiria uma principal que seria a inveja do pênis e, às margens disso, outras observações, conceitos, ideias e falas que não se encaixam tão bem nesse Freud que centraria sua teorização em torno do falo, também dito falocentrico.

A questão da inveja do pênis coloca a mulher numa posição de quem não tem alguma coisa. Esta seria uma das razões possíveis pra explicar uma certa clínica da revindicação, da desvalorização feminina etc. Vou citar uma passagem de Freud que separei mas poderia citar várias outras:

“Observa-se com facilidade que as meninas compartilham plenamente a opinião que seus irmãos têm do pênis, elas desenvolvem um vivo interesse por essa parte do corpo masculino, interesse que é logo seguido pela inveja, as meninas julgam-se prejudicadas e quando uma delas declara que preferiria ser um menino já sabemos qual a deficiência que desejaria sanar, a deficiência de não ter o falo”.

Isso é um ponto. Ao mesmo tempo, sabemos que existe, em Freud, uma série de outras ideias em torno do feminíno como, por exemplo, associar as mulheres ao continente negro ou a conhecidíssima frase , já quase ao fim da vida, segundo a qual “ainda não conseguiu saber o que querem as mulheres”, motivo de uma certa ironia, de uma certa chacota. Isto dito, o que se vê é que, caso ficássemos absolutamente no campo da inveja do pênis, seria mais ou menos fácil responder à pergunta de Freud sobre o que quer uma mulher: ela quer um falo. Todo o campo da maternidade, por exemplo, é um pouco justificado por essa via. O que vamos tentar situar um pouco hoje é o quê estamos chamando de feminino e que extravasaria um pouco a lógica fálica, também presente em Freud mas talvez não tão articulado assim. Freud tenta articular um pouco essas coisas, por exemplo, através da ideia segundo a qual as mulheres teriam um supereu menos desenvolvido justamente por não ter o temor da castração. Os homens, padecendo do complexo de castração, teriam, digamos assim, uma razão a mais pra se curvar às exigências do supereu o que não ocorreria no campo do feminino e que faria inclusive com que elas tivessem essa relação um pouco mais solta. Vemos, no entanto que isso não pode ser o final da discussão e que é preciso tentar ir além.

Considero que a grande virada se dá quando nos perguntamos: esse falo que as mulheres supostamente não tem, o que é? Essa é uma questão que Lacan situou e trabalhou durante anos a fio, ensinando seu auditório – e nós também – a sair de uma associação muito firme entre falo e pênis, que situa definitivamente a mulher no lugar de quem não tem alguma coisa.

Assim, a questão de Freud seria o pênis. Mas se o pênis é um sinal de potência, de gozo, o valor fálico de símbolos de poder etc., o pênis não é só isso. O pênis é também aquilo que não comparece como deveria, aquilo que depois do prazer, precisa de um tempo sem prazer. É aquilo que, na prática, para um homem, se apresenta, sim, como poder, mas também como aquilo que limita o prazer. Assim, a lógica fálica ou, o falo, passa a ser tomado por Lacan, não como órgão em si mas como o símbolo do que está associado ao prazer limitado, circunscrito.

Da falta ao excesso

O gozo fálico é então um certo modo de prazer, dito masculino, gozo fálico, que acontece e que depois de acontecer precisa parar. Trata-se, então, de uma regulação importante do campo pulsional. Já se vê que, associado a isso, vem a ideia de que o campo pulsional por si só não encontra, propriamente dito, uma ordenação, um limite e que isso pode ser transbordante a menos que alguma operação em torno disso venha dar contornos a coisa. O falo passa a ser, portanto, o nome desse regulador de gozo. Nesse sentido a coisa se subverte: ao invés de dizermos “quem não tem o falo está em falta” – o que seria, supostamente, a teorização mais clássica –, chegamos em um “quem não tem o falo está em excesso”. Está em excesso por não ter tão à mão assim esse regulador de gozo, essa função que permite lidar com o transbordamento da pulsão de uma maneira mais ou menos controlada. É isso que permite, por exemplo, Lacan dizer: “à mulher nada falta” ou “nada falta à mulher”. Essa afirmação, feita por ele em 1963, no Seminário X, é, de certa forma bombástica, pois é, sim, uma certa retificação da lógica freudiana, ainda que não de toda lógica freudiana. É uma retificação de uma certa maneira de compreender, por exemplo, aquela passagem que eu trouxe, “as mulheres tem inveja de alguma coisa”. Lacan diz: “às mulheres nada falta”. O problema delas é, ao contrário, um certo excesso por, justamente, não ter grande intimidade com essa função fálica.

Assim como trouxe uma passagem de Freud, trago agora uma de Lacan para fazermos uma contraposição embora eu não queira ir muito longe nessa contraposição. É uma frase longa que não vou trabalhar a fundo, mas que permite pegar um pouco “o clima”:

A mulher revela-se superior no campo do gozo uma vez que seu vínculo com o nó do desejo é bem mais frouxo, a falta, o sinal menos com que é marcada a função fálica do homem e que faz com que sua ligação com o objeto tenha que passar pela negativização do falo e pelo complexo de castração é isso que não constitui para a mulher um nó necessário.

Vocês veem a completa subversão da ideia anterior. O próximo passo, já entrando um pouco no assunto que o Guilherme Gutman trouxe, seria esse: a questão de “quem tem o falo” e “quem não tem o falo” precisaria ser relativizada. Esse “quem” não pode ser absoluto. Não podemos separar o mundo entre “pessoas que tem” e “pessoas que não tem”.

A ideia é, num certo sentido e como está escrito no argumento que tem no nosso folder, que, para psicanálise, a questão do feminino não é uma questão de gênero, isto é, não é uma questão de dividir a sociedade humana entre dois sexos: homens e mulheres. A ideia é: tem alguma coisa que a gente está chamando de feminino e que um homem certamente experimenta ou pode experimentar. Inversamente, também não há mulher alguma que não recorra também ao falo para situar seu gozo. As mulheres talvez estejam, sim, um pouco mais próximas desse transbordar do gozo, tenham que se haver um pouco mais com esse gozo transbordante não fálico. Isso não quer dizer que não haja recurso ao falo, mesmo que ela tenha que buscar o falo do Outro, mesmo que seja através do desejo do Outro. Tomemos, por exemplo, o campo da teorização da histeria. Trata-se de um campo muito centrado em torno do falo, ou seja, histeria não é sinônimo de feminino e sim uma das maneiras possíveis desse feminino se organizar e, frequentemente, isso passa pelo valor fálico da mulher no desejo do Outro.

A psicanálise nos tempos atuais: os excessos….

Separamos então nossa questão da questão do gênero, o que nos permite entrar na questão do excesso. O subtítulo da nossa Jornada, ‘excesso’, não é, propriamente, um conceito. Não tem uma definição precisa, não é um conceito freudiano, nem lacaniano. Se estamos associando isso ao feminino é porque esse gozo transbordante característico das mulheres teria uma certa relação com ele. Além, disso, há uma hipótese segundo a qual isso também apareceria como uma das características importantes do nosso tempo. Localizaríamos isso, por exemplo, nos sintomas marcados por um transbordamento de gozo e por uma satisfação incessante, excessiva, como nas toxicomanias, nas compulsões alimentares, nas compulsões por compras, nas compulsões amorosas e por aí vai. Um dos grandes temas que estamos propondo nessas Jornadas é justamente tentarmos nos perguntar sobre o quê a psicanálise faz com esse excesso tão característico dos tempos atuais. De fato, há toda uma lógica da psicanálise centrada na ideia de que o sujeito goza de menos em função de uma proibição do pai, de uma proibição da civilização e de que é em torno dessa proibição que os sintomas se formam – pretendo voltar a falar sobre o sintoma propriamente dito mais pra frente. Isto posto, o que vemos hoje é um cenário muito diferente: a psicanálise precisa lidar com uma sociedade onde o gozo, a princípio proibido, se torna obrigatório. Estou fazendo divisões estanques que não são absolutas mas que desenham alguma coisa, a saber, que isso coloca uma série de novos problemas e novas questões pra psicanálise. A questão então seria: diante desse excesso, diante desse excesso pulsional tão marcado na nossa época, o que faz a psicanálise? Ela funciona como um falo artificial? Ela vai buscar a boa medida, a temperança, o bom senso? A resposta é ,evidentemente, que não. Ao mesmo tempo, é preciso que alguma outra coisa ela faça que não seja ir na uma contramão do que era o pai, do mito paterno, da ideia de que alguém em algum lugar proíbe que o sujeito faça o que queira. Esse é um ponto importantíssimo nas questões de transformações sexuais e dos múltiplos gozos que os sujeitos desejam ter hoje. Quando se vive numa época em que se pode supor que alguém proíbe alguma coisa, é mais fácil ter a fantasia de que se ninguém proibisse, tudo seria melhor, todos teriam direito plenamente ao seu próprio gozo, a ideia de uma sociedade libertária etc.

O que vivemos hoje é justamente a falência dessa ideia ou dessa fantasia pois, a partir do momento em que tudo é permitido, em que tudo é possível, vemos que por trás da proibição paterna , o que há de fato é uma impossibilidade inerente à satisfação, é o fato de que esta nunca é idêntica ao sujeito que diz a ter. Quando lidamos com a satisfação, passa-se muito rápido da falta para o excesso. Na medida em que se pode tudo, o transbordamento, a pulsão de morte etc. se tornam a tônica das compulsões, cadeia infinita de objetos na qual nenhum deles é exatamente isso que se busca.
Busquemos agora situar o segundo termo do subtítulo: “a sutileza”.

…e as sutilezas

O que seria isso que estamos chamando de sutileza. Como eu disse, não é a boa medida, nem é temperança. Não é o sutil no sentido de ser adequado, de ser correto, de saber se comportar, etc. É de um outro tipo de sutileza que estamos falando, dum tipo, sem dúvida, muito mais difícil de definir. Esse talvez seja o grande tema das Jornadas: há duas plenárias que serão inclusive em torno disso.
A primeira se chama: Como se escreve o feminino?. A ideia é que esse gozo escapa à possibilidade de ser nomeado e transborda o simbólico. Trata-se de algo do qual não se consegue falar e que puxa então a pergunta: como se escreve? É verdade que essa pergunta já coloca uma afirmação, uma tomada de posição: isso se escreve. Mas como isso se escrever, não é nada óbvio. Teremos então, durante as jornadas, um tempo especial dedicado a isso. Buscaremos abordar a questão tanto no campo da literatura como no campo do fim de análise, nos relatos ditos de Passe.

O passe, talvez vocês saibam, é uma maneira da Escola pensar o final de análise, a passagem a analista e como isso se materializa. Essa materialização do excesso é que a gente está chamando de sutileza. Embora eu saiba que eu estou falando de alguma coisa ainda vaga, podemos adiantar que se trata de uma sutileza que guarda íntimas relações com o excesso. Não e a pulsão de morte em sua plenitude, mas também não é seu oposto. Trata-se de alguma coisa difícil de situar. Assim, justamente, a segunda plenária se chama: “O analista e a mulher”, pois parte de uma certa hipótese segundo a qual essa sutileza, que, por sua vez, está ligada ao uso feminino, também tem muito a ver com a posição do analista, com aquilo que faz o psicanalista. Há uma passagem de Lacan que está sendo muito citada e usada na Escola em função do fato do tema do feminino estar muito em voga e que é a seguinte: “As mulheres são as melhores analistas quando não são as piores”. Isso dá bem a ideia do quanto que a sutileza fundamental para uma analista pode também estar próxima do excesso transbordante. É algo que precisa estar lá mas que também tem íntimas relações com aquilo que é devastador, com aquilo que é despersonalizante, com aquilo que é caótico etc. A grande questão das Jornadas seria talvez: como passar do excesso para sutileza sem recorrer ao falo? É uma questão muito ampla que, na verdade, coloca em xeque o que é a própria psicanálise e, mais especialmente, o que é a psicanálise hoje. Como passar do caos à singularidade sem recorrer a boa medida, a temperança, a esquemas mais ou menos prontos, ao analista como aquele que sabe, que tem a sua experiência, que vai ajudar o analisando a dar uns bons contornos pra isso. Isso tudo está presente na clínica, faz parte dela mas não é o fundamental da coisa. Coloca-se então a questão do que acontece nesse lugar.

O sintoma ontem e hoje

Pra tentar rapidamente chegar na questão do sintoma, pra tentar situar em torno do sintoma, isso que imagino ser o problema, me perguntei, ao ver que, justamente, essa mesa preparatória se daria em torno da questão do sintoma, a respeito da possibilidade de como articular o excesso ao sintoma e me dei conta – é pelo menos assim que eu queria tentar ler com vocês ou colocar isso em debate – que, a princípio, a invenção freudiana da psicanálise se deu em torno da ideia de que o sintoma é decorrencia de um excesso que aconteceu em algum lugar. A teoria do trauma segundo Freud é: esse sintoma existe porque em algum lugar houve um excesso de gozo. Mesmo Freud tendo, em 1898, abandonado a teoria da sedução, quando diz não acreditar mais na sua histérica etc., preserva-se, ainda assim, a ideia de que o excesso não se deu de fato, a idéia de que, na realidade, não houve, de fato, sedução. Isto posto, o excesso teria sido “desejado”, teria se manifestado psiquicamente como desejo, como intenção. Alguma coisa teria então proibido essa satisfação e o sintoma surgiria como satisfação substitutiva. Mas essa satisfação implicaria um sofrimento. Isso da conta do quanto o sintoma está ligado, não apenas a uma disfunção, mas também a essa satisfação, ou seja, o excesso é situado inicialmente como uma suposição, supõe-se que alguém em algum lugar gozou demais, que alguém em algum lugar gozou cedo demais e que isso deu problema. Em uma análise aposta-se na palavra como uma maneira de chegar a isso. Nesse caminho, encontram-se as sutilezas. Mas o que seriam estas sutilezas? Seriam as maneiras diversas de abordar isso que teria sido um excesso, seria abordar as pequenas parcelas de gozo de um sujeito, as singulares maneiras através das quais alguém goza, alguém foi gozado etc. Ainda que isso nunca seja encontrado de maneira absoluta, uma análise vai levando um sujeito a encontrar isso de diversas maneiras, a nomear isso de diversas maneiras mesmo que não muito claras. A própria presença do analista está ali para materializar o fato de que isso, o gozo, nunca é completamente nomeável. Sua presença sustenta um pouco esse relançamento da questão sobre o gozo e sobre essa outra presença que cabe mas não cabe nas palavras. Ao longo de uma análise, com meia dúzia de sutilezas, é possível desenhar um excesso. Com meia dúzia de sutilezas materializadas, tem-se uma ideia de qual é a maneira excessiva de um sujeito obter satisfação e que é difícil de ver, que é difícil de encarar sendo, por isso mesmo, encarado através de sutilezas. Não estou querendo dizer com isso que o excesso não se apresente, até porque a sutileza em questão é excessiva, mas acho que dá para organizar um pouco assim. Este seria sintoma dito clássico e a forma como seria tomado numa análise, o que não é mais o caso, ou pelo menos não é o caso sempre, ou pelo menos não é o caso dos sintomas que estamos pesquisando e que estão, também, se apresentando, hoje, na clínica.

Nestes últimos, o excesso é o sintoma. O excesso é justamente a impossibilidade de dar um contorno à satisfação, de dar um contorno à devastação que se apresenta de maneira nua e crua. Isso muitas vezes complica bastante o que seria, a princípio, o início de uma análise. Aqui, não teríamos mais o excesso como uma suposição. Já não seria possível fazer dele a causa de uma busca de sentido. Mesmo quando se diz que Freud buscava o sentido do sintoma, o que de fato buscava era o sentido do excesso, era o sentido muito ligado ao excesso e não um sentido qualquer. Se ele dissesse a uma histérica cuja perna se encontrasse paralisada: “a sua paralisia se deu porque um carro buzinou na rua”, estaria dando um sentido qualquer, não haveria uma certa articulação desse sentido com a satisfação excessiva. Isso se perde ou pelo menos isso se torna muito menos utilizado quando os sintomas são sintomas transbordantes de gozo. Vemos, por exemplo, na clínica das toxicomanias, uma aderência muito grande ao uso de substancias. É muito difícil fazer disso um desejo de saber. É muito difícil dizer ao um toxicômano: “vamos encontrar a razão disso”, “vamos encontrar o porquê disso”, “fale mais sobre isso” etc. Sabemos que a clínica analítica fracassa ao se posicionar desse modo.
Muitas vezes, não parece ser mais possível adiar o excesso ou a sutileza. Este é um dos grandes temas de pesquisa das Jornadas. Teremos uma mesa redonda inteira em torno da clínica dos excessos, pessoas que trabalham com isso, trazendo as suas hipóteses, debatendo entre si, se perguntando como faz a psicanálise hoje com isso, etc. Mas para não deixar apenas para as Jornadas e para finalizar, acho que o que se subverte na teoria do início de análise ou na clínica do início de análise é: às vezes é preciso encontrar já uma sutileza; é preciso produzir uma sutileza pra que a própria questão sobre o gozo se coloque. Não é possível mais que o analista faça um convite à associação livre como convite vago, como convite de que fale, apostando, junto ao paciente, que em algum lugar e em algum momento algo será encontrado. Isso muitas vezes não encontra eco, não fisga o sujeito, não fisga o gozo. Acho então que se existe alguma coisa de urgente. O que se chama de emergência nessa clínica mais grave talvez não seja o fato de que o sujeito vai morrer, de que é urgente porque a situação é grave. Entendo a urgência aí como: há uma certa urgência em materializar esse gozo excessivo através de uma sutileza e a partir daí, talvez, uma pergunta possa ser colocada sobre isso.

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*Rodrigo Lyra é psicanalista, correspondente da EBP-Rio e coordenador das XXI Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP-RJ.