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Práticas da Letra é uma Unidade de pesquisa sobre escritura e leitura na prática psicanalítica. Essa pesquisa se insere no Instituto de Clínica Psicanalítica (ICP) do Campo Freudiano.

A partir de algumas pontuações de J. A. Miller, nossa pesquisa procura explorar a função do escrito e da leitura no ensino de J. Lacan e alguns outros autores da literatura:

“A psicanálise não é apenas questão de escuta, listening, ela é também questão de leitura, reading. No campo da linguagem, sem dúvida, a psicanálise toma seu ponto de partida da função da palavra, mas ela se refere à escritura. Há uma distância entre falar e escrever, speaking and writing. É nesta distância que opera a psicanálise, é esta diferença que a psicanálise explora”. (J. A. Miller, Ler um sintoma)

Neste espaço aberto pela SUBVERSOS em conexão com Práticas da Letra, iremos publicar alguns textos recolhidos de nossa bibliografia, além de autores convidados e breves notícias de nossa pesquisa.

Inauguramos o espaço com um texto de Lucia Castello Branco, psicanalista e escritora, professora titular da Faculdade de Letras da UFMG e autora de livros de psicanálise e literatura.

No texto – A paixão do ler: a leitura no “amor em fracasso” – apresentado por Lúcia na Unidade de pesquisa, ela nos propõe pensar “de que maneira a leitura, tal como proposta por Blanchot, inicialmente, e por Llansol, como legência, pode nos fazer avançar nessa operação do “saber em fracasso”. A partir desta proposta Lucia nos leva ao seminário 20 de Lacan, pela mão de Espinosa e da escritora Maria Gabriela, até à função do amor, do ler e escrever.

Ana Lucia Lutterbach – Psicanalista membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, autora do livro Patu – a mulher abismada, publicado pela editora Subversos e coordenadora do unidade de pesquisa Práticas da Letra.

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As Meninas – Diego Velasquez – 1656

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A paixão do ler:

a leitura no “amor em fracasso”

Por Lucia Castello Branco

Vereis que, pouco a pouco, as letras vão rolar do
próprio nome:                                                     
amor sem m.
amor sem o.
amor sem r.                                                         
amor sem a.                                                                                       

fica o silêncio em que vos dareis uma à outra, ponto
final da chama.                                                                        

Maria Gabriela Llansol

Começo pelo silêncio, ponto final da chama. Começo por ela, em seu ponto final: a chama. Chamo-a por seu nome: Maria Gabriela Llansol. Aprendi com ela, que aprendeu com Nietzsche, que a pergunta “quem sou” é a pergunta do escravo. “Quem me chama” é a pergunta do homem livre.

Quem me chama aqui, hoje? Ana me chamou, eu vim, e desde já agradeço o convite que ela me fez, pois ele me levou, creio, mais adiante. Pensei, a princípio, que era a psicanálise o que me chamava. Depois, mais adiante, pensei que era a literatura o que me chamava. Agora já não sei. Pois, por razões particulares que não vale aqui explicitar, pus-me a reler, há quinze dias, um texto que leio desde muito tempo, desde que li, pela primeira vez, o texto dos místicos medievais – Santa Teresa de Ávila, em primeiro lugar, São Juan de la Cruz, um pouco depois, e Hadewich D´Anvers, mais tarde – e de místicos mais recentes, como Santa Teresa de Lisieux. Trata-se do Cântico dos Cânticos, texto bíblico que terminou por se constituir como um dos paradigmas do discurso amoroso no Ocidente.

Em 1992, fui a Portugal pela primeira vez, e ali permaneci por seis meses, fazendo meu primeiro estágio de pós-doutorado, na Universidade Nova de Lisboa. O que me levou ali foi um projeto sobre o texto místico de freiras portuguesas do século XVIII, supervisionado pela poeta e professora Ana Hatherly. Acontece que em Portugal, enquanto eu esperava pela microfilmagem de alguns manuscritos – nessa época, o sistema de digitalização dos documentos ainda não havia começado, na seção dos “reservados” da Biblioteca Nacional de Lisboa –, decidi ler outras mulheres, autoras contemporâneas portuguesas que eu ainda não conhecia. Foi assim que cheguei ao texto de Maria Gabriela Llansol, que me foi apresentado por uma outra escritora, de quem eu havia me tornado amiga, ainda no Brasil: Teolinda Gersão. Teolinda leu minha tese de doutorado e me disse que eu devia conhecer o texto de Llansol, pois havia escrito uma tese sobre esse texto, sem conhecê-lo.

Devo confessar para vocês que, secretamente, eu sempre soubera que minha tese sofria de um defeito, um defeito grave: a teoria avançava ali mais que os objetos literários que eu havia escolhido para sustentá-la. Ou seja: não havia, a meu ver, texto que demonstrasse a teoria sobre a “escrita feminina” que eu havia construído. É verdade que isso, de alguma maneira, me excitava, pois era como se eu tivesse chegado, de um só golpe, à formulação lacaniana “A Mulher não existe”. Mas, ainda assim, eu supunha que, em algum lugar, haveria esse texto que me permitiria demonstrar, literariamente, esse aforismo. Read More