Notas sobre biopolítica e política da psicanálise [1]

Por Lucíola Freitas de Macêdo*

 

Antecedentes

Antes de entrar mais diretamente em nosso tema de trabalho desta noite, gostaria de relançar, a partir de nosso próprio campo, alguns pontos cruciais da fala do professor Newton Bignotto a propósito do tema da homogeneidade e da exceção na política. Parece-me especialmente interessante, para a nossa discussão, relançar o modo como Bignotto localiza uma espécie de cisão entre a política clássica, fundada, na lógica fálica, sob os auspícios das diferentes figuras da exceção – encarnadas no mundo grego pela figura do legislador, na Idade Média pela figura do Rei, e na modernidade pelo soberano –, e o traço homogeneizador da cultura contemporânea, o consumo. Digo cultura em vez de política contemporânea porque ele parece defender que a busca da homogeneidade é uma pretensão pré-política, pois apaga a marca da diferença como elemento constituinte do corpo social e da política desde a Antiguidade Clássica até o Estado Moderno, como também, sua figura fundante, a exceção. Não poderíamos, portanto, falar rigorosamente de política quando estamos no reino da homogeneização. Bignotto defende que o imperativo “todos iguais pelo consumo” se sustenta num modo de identificação pré-político, uma vez que resulta na eliminação da diferença como elemento de coesão social. O que estaria no horizonte do homem reduzido ao organismo e à sua condição pré-política, é, não propriamente, o horizonte da política, mas o que Michel Foucault chamou nos anos setenta de biopolítica.

O caminho feito por Bignotto levou-me a retomar um artigo que escrevi há alguns anos – “A biopolítica como política da angústia”[2] – à luz do que temos discutido neste momento de preparação para a nossa Jornada. Nesse texto, retomo a proposição de Miller em suas “Intuições milanesas”, da globalização como figura do não-todo na contemporaneidade, a partir da qual proponho e interrogo o problema da biopolítica como uma figura do não-todo.

Em psicanálise, quando falamos de homogeneização, estamos nos referindo à homogeneização dos modos de gozo, o que não deixa de confluir com a tese de Bignotto, ao localizar o consumo na contemporaneidade [3] como uma das máscaras do totalitarismo e da pretensão de homogeneidade.

 

Ponto de partida

Nosso ponto de partida ao tratar o tema que nos reúne hoje, “A política do inconsciente e a política da psicanálise”, por sua aguda atualidade, é o terceiro ponto de fuga referido por Lacan em sua “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola” [4], para dizer do horizonte da psicanálise e da formação do analista àquela época, não muito distante do que nos concerne, hoje.

Para Lacan, os três pontos de fuga, localizados a partir dos três registros, simbólico, imaginário e real, incidem nos modos de existência e organização da psicanálise na cultura e nos costumes. Ele retoma nesse documento endereçado à Escola Freudiana de Paris, os horizontes que projetaram em meados do século XX, passando pela Segunda Guerra Mundial, até aquele momento, a psicanálise na vida pública, e até mesmo “que horror!”, é como ele o diz, na política! [5]. Lacan propunha como missão da Escola escutar e localizar as derivas universalizantes da ciência e seus mitos, sejam, os mitos derivados dos movimentos de 68, tais como o sonho do amor universal no seio de uma humanidade Una, sejam aqueles derivados do humanismo científico provocado pela universalização da ciência e de seus parâmetros de verdade [6]. O terceiro ponto de fuga diz respeito ao real. Para dizer dele, aponta o advento dos Campos de concentração nazistas como precursores do que irá ocorrer como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência e pela universalização que ela introduz, tema ao qual Michel Foucault se dedica especialmente, em 1976, na última aula de seu curso no Collège de France, na qual articula claramente a chamada a generalização do biopoder, o racismo de estado, e o advento do nazismo [7]. O terceiro ponto de fuga apontado por Lacan em sessenta e sete é um modo de dizer da biopolítica, ainda que tal noção só tenha sido formulada por Foucault nos anos setenta. É um modo de problematizar seus subprodutos e suas consequências para a formação do analista, de modo que nos projeta no momento atual, momento em que o gozo já se tornou um fator da política, e em que a psicanálise já não poderá conservar, ao menos no âmbito da orientação lacaniana, a mesma distância para com a política, tal qual manteve na idade das ideologias. Jacques-Allain Miller insiste que a psicanálise está implicada nos destinos da modernidade, para o melhor e para o pior [8].

Deste modo, anunciando o que buscarei problematizar ao longo dessa exposição, acredito que seja possível afirmar que o inconsciente é a política, famosa inversão proposta por Lacan no Seminário A lógica da fantasia, se e somente se, estivermos no campo do Outro, regido pela lógica fálica, pelo Nome do pai, em que a exceção funda a política, tal qual demonstrado por Newton Bignotto em sua brilhante conferência.

Mas me parece, por outro lado, problemático afirmar “o inconsciente é a política”, quando estamos no âmbito da inexistência do Outro, em que não podemos nem
mesmo afirmar que há um sujeito, que há o inconsciente. Arriscaria até mesmo dizer que do lado feminino da sexuação, o sinthome é a política.

Para tentarmos avançar nessa zona movediça, recorreremos à noção de biopolítica. Parece que o momento em que vivemos é propício a incorrer-se em uma perigosa tautologia: a biopolítica é a política. A biopolítica e o biopoder são os terrenos privilegiados sob os quais o real é tocado pela técnica. Constituem o horizonte, para não dizermos o abismo, sob qual assistimos desde o advento dos campos de concentração nazistas e a invenção da bomba atômica no século 20, até mais recentemente, “ao vivo” e em tempo real, a espetacularização da destruição das Torres Gêmeas em 2001, a ocupação do Iraque, a queda e o enforcamento de Saddam Hussein em 2003, as revoltas que resultaram na morte de mais de dez mil civis na Síria no contexto da chamada Primavera Árabe em 2011, ou seja, o giro que marca a passagem das guerras amáveis entre exércitos, movidas por ideais patrióticos, pela defesa dos territórios e das fronteiras, à destruição em massa de populações civis no indomável espetáculo da pulsão de morte em ação [9].

A biopolítica como máquina do não todo e a formação do analista

O termo biopolítica, aparece pela primeira vez no ensino de Foucault, em sua conferência “O nascimento da medicina social” [10], proferida no Rio de Janeiro em 1974. É no contexto da medicina que este termo será gerado: o capitalismo que se desenvolveu entre os confins do século XVIII e o início do XIX socializou um primeiro objeto, o corpo, em função da sua força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não operou simplesmente através da consciência ou da ideologia, mas se exerceu no corpo e com o corpo. Para a sociedade capitalista, o mais importante é o somático, o corporal: o corpo se constitui enquanto realidade biopolítica, e a medicina como estratégia biopolítica [11].

Os problemas colocados por Michel Foucault através das suas considerações sobre a biopolítica nos parecem esclarecedores quando se trata de adentrar o debate político e epistêmico em torno do modismo das TCCs, do uso generalizado dos protocolos, da medicalização generalizada da vida e da ideologia da avaliação. O que parece haver em comum entre tais tendências do século XXI, mais além do interesse em garantir fatias do promissor mercado da saúde e da vida, é o fato de serem subprodutos de uma engrenagem que se alimenta da chamada “biopolítica produtiva”, termo de Toni Negri [12].

Nesse contexto, a medicina dita científica, aquela dita baseada em evidências, passa a desempenhar um papel hegemônico: se os juristas dos séculos XVII e XVIII inventaram um sistema social dirigido por um sistema de leis codificadas, pode-se afirmar que os cientistas do século XXI estão por inventar uma sociedade da norma, e não mais da lei. Não são os códigos legais que regem a sociedade, mas a distinção permanente entre o normal e o patológico, e a empresa perpétua de restituir o sistema à normalidade [13]. Para Foucault, o efeito histórico produzido por essa tecnologia de poder centrada sobre a vida é a sociedade de normalização [14].

Miller procede ao longo de suas “Intuições milanesas [15] uma instigante analogia entre a estrutura do Império [16] , concebida e amplamente desenvolvida por Toni Negri em seu famoso livro, naquela época (2002), recém publicado, e a estrutura do não todo, tal qual proposta por Lacan em “O aturdito”, escrito de 1972 [17]: a estrutura do Império, assim como o fenômeno da globalização, se inscreveriam na lógica do não todo. Vale ressaltar que consideramos o fenômeno da globalização como subproduto da biopolítica. Vejamos como Miller [18] define a noção de não todo, e como se serve deste conceito de Lacan para pensar os efeitos da globalização da economia de mercado.

– Sob a égide da globalização não vivemos sob o reinado do pai: a estrutura do todo cedeu àquela do não todo e não há mais nada que esteja em posição de interdito. A função do pai, ligada à estrutura que Lacan reconheceu na sexualidade masculina, comporta um todo dotado de um elemento suplementar e antinômico. Essa estrutura é a matriz da relação hierárquica.

– O não todo, por outro lado, não é um todo que comporta uma falta, mas ao contrário, uma série em contínuo desdobramento, sem limite e sem totalização, em que nenhum elemento é dotado de um atributo que lhe seja assegurado por princípio e para sempre. O não todo comporta a precariedade, e nos reporta à sexuação feminina. Nesse campo, o significante não nos chega através de blocos organizados, mas de modo fragmentário e descontínuo.

– Hoje não há mais cidade. A cidade é imaginária. É uma nostalgia. Só a encontramos na televisão, a ágora da época do mercado global, locus de homogeneidade social. Globalização diz de um espaço social em que nada se encontra em seu antigo lugar, se trata da subtração da própria noção de lugar. Nesse contexto, a categoria da falta tende a tornar-se obsoleta.

– Com a banalização do espetáculo sexual estamos em outro regime da sexualidade, e quanto a isso, o aparelho conceitual freudiano, fundado no interdito, no recalque, na repressão, e na falta, permanece alinhado com a época disciplinar.

– O Império como figura do não todo é, por outro lado, um regime que não funciona pelo interdito ou pela repressão, tornando problemática a ideia de transgressão, tanto quanto as de revolução e de liberação. Miller assegura que a obra de Negri não é o novo Capital, mas um grande poema. Ele descreve de modo patético um mundo sem operadores, um império sem imperador e sem imperialismo, que está em toda parte e em parte alguma, sem fronteiras e sem exterior.

– O tratamento analítico, marcado por esses tempos, sofre suas consequências, há mutações nos modos de constituição dos sintomas e consequentemente, na clínica. Para pensar o destino da psicanálise na era da globalização, Miller [19]  propõe uma genealogia do ensino de Lacan a partir das noções foucaulteanas de sociedade disciplinar e sociedade de controle.

Nessa genealogia, o primeiro momento do ensino de Lacan corresponderia ao da formalização da psicanálise na época disciplinar, período em que se dedica ao seu retorno a Freud. Tal momento estaria fundado sobre a égide do conceito de inconsciente e sobre a formalização unificante do Édipo, da castração, e do recalque. Esse é o Lacan clássico, cuja clínica tinha como pivô o Nome-do-Pai e as identificações, e se distribuía em função das posições do sujeito em relação a estes, respondendo essencialmente à estrutura da sexuação masculina, à estrutura do todo e do elemento antinômico.

No segundo momento, dito de transição, Lacan realiza uma subversão da obra freudiana, através da pluralização do Nome-do-Pai e da atribuição da operação do recalque não mais ao interdito, mas ao próprio fato de linguagem, subvertendo, deste modo, o conceito de desejo, antes ligado ao interdito, aproximando-o do conceito de gozo. Assim, a falta perde sua primazia em favor daquilo que vem a preenchê-la, o objeto a. A segunda clínica é a clínica centrada na fantasia, em uma história concebida como cenário inconsciente e na relação do sujeito com o núcleo de gozo que sutura sua falta constitutiva. O fim do tratamento é tido como um atravessamento, uma passagem ao mais além da fantasia fundamental.

Miller localiza no terceiro momento do ensino de Lacan, sua saída da época disciplinar, momento em que concebe o nó borromeano como um esforço para superar o binarismo da estrutura. Se a sociedade disciplinar se constitui por uma exterioridade e oposição entre os aparelhos de repressão e os que são submetidos a eles, ou seja, por uma oposição frontal e uma delimitação da figura dos opressores, supondo uma clara delimitação entre o dentro e o fora, nas sociedades de controle a dominação se dá por redes flexíveis, moduláveis, flutuantes, o que Negri chama de alienação autônoma, designando uma forma de dominação que não é mais externa que interna, à qual o termo “êxtimo” poderá nos ajudar a esclarecer.

Na dita última clínica de Lacan, a primazia é dada ao gozo em detrimento da verdade e do sentido, e ao sinthoma, que não tem contrário, como modo de aparelhar esse gozo fora da norma, silencioso, indizível, que itera, e não se negativiza com a incidência do significante. Quanto ao final de análise, encontra-se desprovido do pathos do mais além, da transcendência, do atravessamento. A ênfase é colocada na mudança de regime de gozo obtida no tratamento.

As elaborações de Lacan em seu último ensino nos fornecem parâmetros para pensarmos a psicanálise na era da globalização. As modificações de nossa clínica têm uma estreita correlação com essa “máquina do não todo” que a perpassa, interpela, mas também a anima, e na qual florescem as patologias centradas no narcisismo e na relação com a mãe, em que os sujeitos padecem de uma espécie de adição generalizada. Aí se encontramos o frenesi do não todo, o sem limite da série.

A biopolítica produz desordens no real

Para dizermos da biopolítica e das desordens que ela produz no real, recorreremos ao contexto em torno do qual Giogio Agamben desenvolve suas hipóteses e sua argumentação sobre a biopolítica: os Campos de Concentração nazistas. Sua hipótese mais ampla é que a lógica que rege o Campo de Concentração se atualiza na biopolítica contemporânea, embora isso permaneça velado. O Campo seria o lugar no qual desaparece radicalmente toda distinção entre próprio e impróprio, entre possível e impossível, entre o bem e o mal, entre o moral e o imoral. Nele, os deportados existem cotidiana e anonimamente para a morte. Já não se pode distinguir entre a morte e o simples desaparecimento, entre o morrer e o ser liquidado, pois ali a morte é trivial, burocrática e cotidiana [20].

A banalização e burocratização da morte é analisada por Agamben na esteira das reflexões Foucault a propósito da biopolítica e do biopoder, terreno fértil para todas as formas de racismo, especialmente, para o racismo biológico e o racismo de estado, aos quais atribui o antissemitismo e o advento do Nazismo, respectivamente. É isto o que estava em jogo na legislação de 1933, que versava sobre a “proteção da saúde hereditária do povo alemão” [21]. Deste modo, o corpo político se rompe sucessivamente até o ponto de se reduzir ao corpo biológico enquanto população, portadora de traços biológicos e raciais a serem regulados, controlados, e por fim, exterminados, por técnicas e saberes específicos. Tal perspectiva foi amplamente abordada por Primo Levi em seus testemunhos, nos quais concebe o Campo como uma notável experiência biológica e social: “Fechem-se entre cercas de arame farpado milhares de indivíduos, diferentes quanto a idade, origem, língua, cultura e hábitos e ali submetam-nos a uma rotina constante, controlada, idêntica para todos e aquém de todas as necessidades; nenhum pesquisador poderia estabelecer um sistema mais rígido para verificar o que é congênito e o que é adquirido no comportamento do animal-homem frente a luta pela vida” [22] .

Agamben explicitou, a partir da leitura dos testemunhos de Primo Levi, o que está em jogo nesta engrenagem da biopolítica do racismo, cujo produto final é o chamado “mulçumano”. O sistema da biopolítica nazista tornou os Campos não somente o lugar de morte e de extermínio, mas principalmente, o lugar de “produção” do mulçumano, enquanto última “substância biopolítica” isolável no continuum biológico. Este acento na cadeia biopolítica – produto – resto – substância – mulçumano, é o argumento forte que fundamenta a polêmica, e mesmo problemática tese de Agamben, do campo de concentração como paradigma biopolítico do Ocidente [23]. Digo problemática porque a generalização dessa tese ao hall do paradigma me parece menos interessante, que nos servirmos dela para pensarmos fenômenos e situações políticas e sócias contingentes.

Os “mulçumanos”, ou afogados, aos quais se refere Levi no título de seu livro, são a multidão anônima, continuamente renovada, e sempre igual, tão vazios que nem mesmo podem sofrer. Levi descreve como essa multidão anônima permeia sua memória, com sua presença sem rosto, aquela do homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo olhar não se lê o menor pensamento. O mulçumano habita o umbral extremo, um “não lugar” entre a vida e a morte, entre o humano e o inumano. Este umbral recebe, no testemunho de Levi, o nome de “zona cinzenta” [24]. Na zona cinzenta se precipitava tanto o terrível, quanto o indecifrável, não era conforme nenhum modelo, o inimigo estava ao redor, mas também dentro, o “nós” perdia seus limites [25].

Como bem observa Ram Mandil [26], o regime do Campo não se restringe apenas à separação entre os que estão dentro e os que estão fora, ele faz proliferar uma série de fronteiras móveis, às vezes imperceptíveis, quase nunca explicitadas, de modo que que a segregação tenha atingido aí o seu ponto máximo, produzindo, paradoxalmente, não uma separação radical, uma fronteira, mas justamente o apagamento de toda diferença, pois o que marca a diferença não é a identidade, mas a singularidade do modo de gozo, de sua localização na ordem dos discursos. Isso nos leva a pensar que o aspecto nefasto da segregação reside não na discriminação que ela produz, mas principalmente, no apagamento da diferença ao nível dos modos de gozo.

As considerações de Miller a propósito de O Império, e suas incidências sobre a prática analítica, tanto quanto aquelas feitas por de Giorgio Agamben a propósito das incidências da biopolítica e do biopoder na máquina concentracionária nazi e o que disso perdura na contemporaneidade, convergem para um ponto comum: o apagamento dos limiares, das fronteiras, das oposições, a presença, segundo os termos de Miller, de uma forma de dominação que não é mais externa que interna, à qual o termo “êxtimo” poderá esclarecer.

Políticas da extimidade, políticas do sintoma

A noção de extimidade subverte a lógica binária e dicotômica que rege as categorias clínicas e os saberes próprios às sociedades disciplinares, seja no campo da filosofia, como também no que concerne à psicanálise, justo no ponto em que problematiza o uso simplista dos binarismos interior/exterior, inclusão/exclusão. Inaugura uma perspectiva topológica, e se constitui como um modo de nomear o núcleo real da experiência analítica, antecipando e circunscrevendo a porta de entrada para o que irá se delinear na abordagem do real própria à noção de sinthome [27].

Gilles Chatenay [28] demonstra em “La loqique poétique de Jacques Lacan”, como a topologia da extimidade, operando uma torção na lógica clássica, de modo que o exterior passa a situar-se no mais íntimo, e que o excluído é internalizado, atravessa como um fio, e mesmo como um método, todo o ensino de Lacan, desde a retroação da cadeia significante, às superfícies tóricas e destas aos nós borromeanos. Para Chatenay, ao Lacan referir-se ao gozo feminino, à mulher como Outra para si mesma, ele o faz sob a perspectiva desse gozo exterior e ao mesmo tempo o mais íntimo, desse gozo êxtimo.

Acredito que a noção de extimidade tenha sido uma das interpretações de Lacan às políticas identitárias, fundadas na homogeneização dos modos de gozo, que já despontavam no horizonte do século XX. A perspectiva da extimidade remete ao estatuto do inconsciente, e responde em psicanálise ao princípio da não identidade de si consigo mesmo [29], ou, dizendo de outro modo, ao encontro com o Outro que agita o sujeito no seio de sua identidade consigo mesmo. Em “A instância da letra no inconsciente”, Lacan interroga: “qual é esse Outro com o qual estou mais ligado que comigo mesmo, posto que no seio mais assentido da minha identidade comigo mesmo, é ele quem me agita?”30. O paradoxo do Outro interior implica em uma fratura na noção de identidade pessoal. Nessa perspectiva, e na medida em que é absolutamente distinta da pura exterioridade, a extimidade designa um hiato, uma lacuna, no lugar em que se esperaria encontrar as vestes imaginárias da identidade de si consigo mesmo. Para Lacan, o inconsciente freudiano formalizou a incidência de não só de uma estranheza, como também de uma lacuna ineliminável na relação do sujeito com Outro, consigo mesmo, e com a língua. Esta é a raiz da noção de extimidade. Tudo o que se constitui e se constrói na civilização, como envoltórios e superestruturas, a fim de recobrir o hiato indelével da identidade de si consigo mesmo, assim como aquele da alteridade do Outro, faz com que a tensão e a opressão próprias ao ponto de extimidade sejam sentidas como vindas unicamente do exterior, dissimulando a servidão voluntária sob o manto do Outro que nos domina31. Dissimulando uma segregação que é estrutural, que constitui o sujeito, e ao mesmo tempo, a alteridade radical como tal, à qual nenhum imperativo de inclusão poderá suturar. Por isso, políticas que, movidas pela impossível justiça distributiva dos gozos, orientem suas ações em reivindicações fundadas no traço identitário, nos ideais de inclusão, sem levar em conta o princípio de extimidade, estarão, em maior ou menor grau, vagando entre o assistencialismo à vitimização.

Quanto às políticas do sintoma, tema amplamente abordado por Miller nos últimos anos, acredito que tanto a interpretação como meio-dizer e o impolítico como figura do não todo, trabalhados por Luis Tudanca [32], como a solidão-comum a partir da qual Jorge Alemán [33] propõe pensarmos o comum não a partir de um fundamento identitário, mas, a partir da solidão sinthomática, constituem modos singulares de dizer da política do sintoma e de haver-se com o real, absolutamente diferentes daqueles engendrados por dispositivos biopolíticos que vagueiam entre o racismo estrito e os racismos às avessas, entre as tentativas de normalização e homogeneização e o adestramento.

Deixaremos, pois, abertas as portas para que em nossa comunidade de trabalho cada um coloque algo de si e dos modos que vem encontrando para fazer valer a política do sintoma na civilização. Para concluir, diria que a heresia de Lacan, tanto quanto a nossa, praticantes da psicanálise no século XXI, é a de não sairmos do campo da linguagem no trato com o real, mesmo que para isso seja preciso depor as armas significantes quando topamos com o que é da ordem de um acontecimento de corpo, com o que não se deixa significar, e a isto dizermos: sim! Dando-lhes não um sentido, mas um lugar.

[1] Trabalho apresentado por ocasião de atividade Preparatória para a XVII Jornada da EBP-MG.
[2] Publicado em Opção Lacaniana, n. 45.
[3] Tanto quanto os programas totalitários e políticas fundadas na lógica do mercado, muito em voga na contemporaneidade: Qualidade total, Tolerância zero, Guerra às drogas entre outros.
[4] LACAN. “Proposição de 9 de outubro de 1967”. IN: Escritos, p. 248-264.
[5] LACAN. “A psiquiatria inglesa e a guerra”. IN: Escritos, p. 124.
[6] LAURENT. “Racismo en el siglo 21?” IN: Coloquio de la extimidad. EOL, p. 64-65.
[7] FOUCAULT. Em defesa da sociedade, p. 285-315.
[8] MILLER. Psicoanálisis y política, p. 34.
[9] MILLER. “Que decimos al decir Lacan”. IN: Revista de Cultura N, 30/05/2012. Disponível em:
http://www.revistaenie.clarin.com/ideas/decimos-decir-Lacan_0_707329274.html
[10] Esta conferência se encontra em Dits et Écrits III, p. 207-228.
[11] FOUCAULT. La naissance da la médecine sociale, Dits et Écrits III, p. 209-210. Essa conferência precede a referência “clássica” sobre o tema, a saber, seu curso de 1975-76 no Collège de France, Em defesa da sociedade.
[12] NEGRI. Exílio, p. 33-35. Uma vez admitida a noção de biopolítica tal qual a concebeu Foucault, é preciso entender como esta se insere na experiência científica contemporânea. É preciso ir um pouco mais longe e perguntar-se o que significa biopolítica quando entramos no pós-moderno, ou seja, nessa fase do desenvolvimento capitalista em que triunfa a subordinação real da sociedade ao capital… nesse momento, o biopolítico muda de cara: torna-se biopolítico produtivo… há uma simbiose entre os elementos vitais e econômicos, entre os elementos institucionais e administrativos…
[13] FOUCAULT. Crise de la médecine ou crise de l’antimédecine?, IN: Dits et écrits III, p. 50.
[14] A este propósito, consultar o riquíssimo trabalho de LE BLANC em seu livro La maladie de l’homme normal. Paris: Le passant, 2004
[15] Retomada em Milão, por ocasião da criação da Escola Lacaniana do Campo Freudiano na Itália, da lição de 22 de maio de 2002 do Curso de Orientação Lacaniana.
[16] NEGRI. Cinco lições sobre Império, p. 116: “Propomos o conceito de Império para definir o ordenamento global temporário. O Império faz referência à nova forma de soberania que veio após o Estado-nação, uma forma ilimitada de soberania que não conhece fronteiras, ou então conhece somente fronteiras flexíveis e móveis…”.
[17] Resposta de Lacan a O antiédipo de Deleuze e Guattari
[18] A aula de 22 de maio de 2002, fonte da citação, encontra-se publicada na revista Mental: MILLER. Intuitions milanaises [2]. IN: Mental – Revue Internationale de Santé Mantale et Psychanalyse Appliquée, n. 12, MAI 2003, p. 17.
[19] MILLER, J-A. “Intuitions milanaises” [1]. Mental – Revue Internationale de Santé Mantale et Psychanalyse Appliquée, n. 11, DEZ 2002, p. 17.
[20] AGAMBEN. O que resta de Auschwitz, p. 82.
[21] AGAMBEN. O que resta de Auschwitz, p. 90.
[22] LEVI. É isto um homem?, p. 88
[23] AGAMBEN, O que resta de Auschwitz, p. 187.
[24] LEVI. Os afogados e os sobreviventes, p. 31-59.
[25] LEVI. Os afogados e os sobreviventes, p. 31-37.
[26] MANDIL. A “zona cinzenta da segregação”. IN: Boletim Um por Um, n. 130.
[27] NITZCANER. “Lo que el Outro esconde”. IN: Coloquio de la extimidad, p. 20.
[28] CHATENEY. “La logique poétique de Jacques Lacan”. IN: La cause freudienne n. 78, p. 127-135.
[29] MILLER. Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 25-42.
[30] LACAN. A Instância da letra no inconsciente. IN: Escritos, p. 528.
[31] BRODSKY. Los envoltórios de la extimidad. IN: Coloquio de la extimidad, p. 20.
[32] TUDANCA. O racismo nosso de cada dia. IN: Almanaque online n. 10.
[33] ALEMÁN. Soledad: Común – políticas em Lacan.

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*Lucíola Freitas de Macêdo é membro da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Minas Gerais e da Associação Mundial de Psicanálise, Diretora de Ensino do IPSM-MG, Mestre em Filosofia/UFMG, Doutora em Psicanálise e Estudos da Cultura/UFMG. Diretora da Coleção Estudos Clínicos/ Editora SCRIPTUM e colunista do Blog da Subversos

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