José Castello dedicou sua coluna do caderno Prosa e Verso do Jornal O Globo em 03/01/15 a Primo Levi: a escrita do trauma. Leia o texto abaixo ou clique em http://goo.gl/9VDFaY 

Escrita do indizível

por José Castello

Em dezembro de 1943, o jovem Primo Levi foi detido pela milícia fascista, na Itália. Em fevereiro do ano seguinte, é deportado para o complexo de Auschwitz e levado para o campo de concentração de Buna-Monowitz. Com a derrota alemã, foi enfim libertado em janeiro de 1945. Depois de uma tortuosa viagem, retorna a Turim. Assalta-lhe, então, um desejo incontrolável de narrar o que viveu. Narrar o horror – narrar o impensável. Desse impulso surgiu “É isto um homem?”, seu primeiro livro, de 1947. Mas será possível narrar um trauma?

Ao pensar em Auschwitz, Levi constata que se defronta o incompreensível. Não existem palavras que correspondam ao que viu e ao que sentiu. “É do olhar sem palavras, cravado no corpo, que o sujeito não se esquecerá”, escreve Lucíola Freitas de Macêdo em “A escrita do trauma” (editora Subversos), um inquietante ensaio sobre a viagem radical de Primo Levi _ trabalhada à luz das teorias de Jacques Lacan. “O traumatismo que reverbera silenciosamente na carne não é passível de apagamento, apenas o evento traumático é dado ao esquecimento”.

Lucíola nos lembra, então, de Jacques Aubert que, em “Um percurso da psicanálise à literatura”, nos traz seu contundente testemunho: “Algo estava morto, embora não se soubesse o quê. Não se tratava do mesmo tipo de morte, pois o que estava em jogo já não seria uma morte histórica, mas simbólica”. Esta morte aniquila o poder de representação das palavras. Revela sua insuficiência e impotência. Para Aubert, após a experiência do trauma, o sujeito experimenta “uma catástrofe significante sem precedentes”. A linguagem entra em pane. Ao tentar narrar, o autor se vê diante de fantasmas intransponíveis como o não apresentável, o impensável e o intratável. Que coisa é essa que se interpõe e cala o escritor? Outro autor, Jacques Rancière, nos dá uma resposta precisa: “Não é possível encontrar para ela um representante que esteja à sua altura”.

Para Rancière, relido por Lucíola, o irrepresentável estaria, justamente, “na impossibilidade da experiência se expressar em uma língua própria, estável, convencional e convencionada”. Ela nos lembra aqui das palavras de Levi, quando disse: “A nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem”. Era impossível acreditar em Auschwitz, não porque o campo de concentração fosse cruel, mas, sobretudo, porque ele não tinha um porquê. “Nenhum motivo militar, nenhuma razão geopolítica, nenhum interesse econômico. (…) Aquilo não deveria se produzir porque não tinha razão de ser”.

Na tentativa de narrar o que não suporta uma narrativa _ na luta para dizer o sem sentido _ as palavras fracassam. Como narrar o irrepresentável? É diante desse impasse que Primo Levi opta pela estética do fragmento. Só os fragmentos _ espécies de murmúrios _ “captam a um só tempo o detalhe, o absurdo e o destino”. Mostra-nos Lucíola, então, como Levi dá primazia à “mostração” em detrimento da representação. Opta pela transmissão de “alguma verdade”, em prejuízo da Verdade. Só trilhando o fragmento, Levi alcançará a “zona cinzenta” que separa as vítimas de seus algozes. Assim a descreve: “O inimigo estava ao redor, mas também dentro, o “nós” perdia seus limites, os contendores não eram dois, não se distinguia uma fronteira, mas muitas e confusas, talvez inúmeras, separando cada um do outro”. Os elos, séries , conjuntos se desfazem. Estão todos alijados de qualquer centro. “Existiam mil mônadas impermeáveis, e entre elas, uma luta desesperada, oculta e contínua”.

A rigor, essa “zona cinzenta” era formada pela classe híbrida dos prisioneiros funcionários. Descreve Lucíola: “Era uma zona de contornos mal definidos, que ao mesmo tempo separa e une os campos dos senhores e dos escravos”. Sem limites nítidos, esse mundo se torna irrepresentável. Daí a pane das palavras. Para enfrentá-la, Primo Levi decide colocar-se “contra a retórica”. A linguagem regular e coerente já não dá conta do que viu. Linguagem alguma _ afora os murmúrios e as lacunas _ dá conta de Auschwitz. Daí a desconfiança de Primo Levi em relação às narrativas do horror feitas pelo psicanalista Bruno Bettelheim. Para Bettelheim, diz Levi, “a armadura psicanalítica é como um evangelho através do qual tudo se esclarece”. Não: não se pode explicar tudo. Ao contrário: diante do trauma _ coisa bruta _ resta-nos balbuciar. Registra Lucíola os temores de Levi “quanto ao risco de se servir das palavras para constituir uma blindagem, suprimir a dúvida e o espanto, os meios tons, as intransponíveis zonas de opacidade”. Enfrentar a verdade é, ao contrário, suportar o silêncio.

Existem escritores que fazem da escrita um campo da palavra, outros um campo da letra. Esses últimos são aqueles que operam com as letras a tal ponto que marcam na escrita algo do impossível da língua em relação aos efeitos de sentido. Homero Mattos Jr é um escritor que leva às últimas consequências o limite entre a letra e o nada, algo que Banchot definiu como “o ponto onde o infinito coincide com lugar nenhum, escrever é encontrar esse ponto”[1].
Esse ponto ocorreu-me chamá-lo de haumscritos[2], uma vez que todo um é suscetível de se escrever como uma letra, aquilo que diz respeito ao irredutível, aquilo que não se diz, que não se pensa e que a escrita tenta encontrar.

A coluna in situ: o artista por ele mesmo do blog da Subversos fecha o ano de 2014, com muita alegria e presenteia os seus leitores com algo muito especial, a escrita de Homero Mattos Jr, ensaísta paulista, que escreve em dois blogs Koyaanisqatsi e Sintaxeamentos, e que de maneira singular, com a sua arte, nos faz ser tocados com o que se desprende de suas letras. Boa leitura e felizes festas!

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[1] Maurice Blanchot. O espaço literário. Rio de Janeiro:Rocco, 1987, p.42

[2]Maria Fátima Pinheiro- O saber do artista e a prática da letra. Tese de doutorado/UERJ- 2014

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¿tal qual?

[ coraçao na mao poe edgar dormindo quando menina-o o chao das batatinhas ]
l.wittgensteinrue the rose sunk
paris-áustria
telefone 19091981novesfora

KITAB AL-BULHAN OR BOOK OF WONDERS (LATE 14THC.)

KITAB AL-BULHAN OR BOOK OF WONDERS (LATE 14THC.) – Via Pere Salinas

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. vindo ou indo giramundo o mundo vira porquanto rodopia alinhando letrâncias desviantes posto regra nenhuma tem este que em casos de permanente só o vigir plural do não perpétuo faz evolver tal qual o quê ao feitiço atrativo do amor decorre  como de exemplo exemplar lhe aconteceu querendo o querer de imensas inquietações das que por não vezes acontecer soi onde o só falar de liberdade em condicional diz o dizer de modo a viver o sim o se faz e não o se pensa é isto assim no presente imperativo condicional no dizer tudo isso palavras outras de incerto passado nu falou ó teu olhar oculto lo mirar y comer quererei e quis e ¡quero porque ¡quisô! pois assim ajuda melhor entender os sentimentos por direta experiência por dar se aprendendo alegre ou triste por não condizer modo algum de normalidade tamanha e tanta empatia foi que mais ler quis não temendo se espatifar esse ser frágil coisa eterna cuja sagração secreta é se manter mudando sempre o imperfeito infinito mutável fluxo agitado porque letra é seu inconsciente como escura noite real a encobrir indefinidos por iguais alvorecer ou crepúsculo no curto tempo ao menos modo tornar se impossível saber se de momento em qual está [¼]si[½] reverso no tamborilante rimbaumbar poético do dois em um musical esferado girante terrenar rotundo ou lunando negro três vezes dez trinta ou trinta + uma branca shining cheia moon is hoje !?! me instrua amanhã talvez depois ? quando… o sol o segundo rimbaumbando chegar além no amanhã onde lá bambam estes sidney o sheldon y conejón el mágico prestidigitador lo mismo querem saber ? there is more ¡aleluia aleluia aleluia! ¿acabou? ou tem mais de cositas ôtras muchas pequititicas de fato o feito é que do saber querer pretenso em palavras por assim expressar desejou as ele como tais apenas doidas literariamente ainda que mesmo tais propriamente não as descrevo aqui porém repare[½]emoção[¼] a pendular fez muitas letras focar

 

 , Dear

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[½ ] puesto los sábios dan por sentado ser cosa absolutamente impossible haber cristalino espejo que una baiana no lo pueda enviar de parte cualquier

[¼]  somewhere there was once a flower, a stone, a crystal, a queen, a king, a lover, and his beloved, and this was long ago, on an island somewhere in the ocean five thousand years ago… such is love, the mystic flower of the soul. this is the center, the self. nobody understands what I mean. only a poet could begin to understand.

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Escrivata

para teclado&monitor
em menor Solmaior maior e  Simaior

Al-Sufi, Book of Fixed Stars, Iran 1675, The David Collection (Copenhagen)

Al-Sufi, Book of Fixed Stars, Iran 1675, The David Collection (Copenhagen) – Via Pere Salinas

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Pere Salinas - Visión china de la bóveda celeste

Visión china de la bóveda celeste – Via Pere Salinas

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adágio bandido

me escreve ela pediu e ele então começou a escreve-la kent de seus nevers knowns befores e cools de já vis de outras tantas franças impressionistas amáveis e revoltosas marias de sal e rosaromáticas espanhas de ouros a matar mouros e touros a paus copas e espadas de irredentas itálias e indomáveis brasis amantes só escrevendo escrevendo escrevendo o tempo todo escrevendo. e beijando. beijando beijando escrevendo escrevendo beijando e escrevendo escrevendo escrevendo até de tanto  escrever mais não poder.

parado neste instante[½]

guardando letras pra mais muito masmuito mais tempo preservar o não perder o si impassível possível sem deixar explodir o crescendo que já de novo quer outra vez escrever agora si orientando mais zen menos zoom de cabeça pra baixo e pernas pro ar mais lentamente ir escrevendo explorando incensado sensato nem tanto escrevendo escrevendo beijando sobre e sob tântricas índias suaves nippons evanescentes cochinchinas sussurros e cantos gemidos de nãos consentidos e sins sem sentido beijando escrevendo escrevendo escrevendo todas as línguas do mundo luxuriando per caracterem ó sic mea fata canendo dolor escrevendo escrevendo escrevendo escrevendo  oh me ! oh my ! esse se perde se acha do si deixando se ir nesse verlieren den kopf  puf schrupppp krupp sukiaky aranjuez aranjuez ! mon amour beijando escrevendo beijando escrevendo escrevendo beijando escrevendo beijando beijando beijando escrevendo mais não vai dapraguentá meu deus isto é quero mais tanto tanto si dar-te segurar não dá mas mais mais é páragora !
e foi por fim assim no final exaustada toda escrita ele a deixou.

Curadoria de imagens por Paula Delecave*

Texto: Wikipédia – a enciclopédia livre

Masao Yamamoto, nascido em 1957 na cidade de Gamagori, Japão, é um fotógrafo freelancer que começou seus estudos como pintor. Atualmente, Masao usa a fotografia para capturar imagens que evoquem memórias. Ele borra a fronteira entre pintura e fotografia, experimentando em suas superfícies de impressão fotográfica: tinge, colore com chá, pinta suas fotografias. Seus temas incluem nus, naturezas-mortas e paisagens. Ele também produz inatAlações com suas pequenas fotografias para mostrar cada fotografia como parte de uma realidade maior.

Masao, falando de seu trabalho Shizuda, em seu website, cita o Tao Te Ching , onde um velho filósofo chines Lao-tzu escreveu: (…) “Uma grande presença é difícil de ser notada. Um grande som é dificil de ser ouvido. Uma grande figura não tem forma. “O que ele quer dizer, diz Masao, é que o mundo é cheio de sons que nós humanos não somos capazes de escutar. Por exemplo, não escutamos os sons criados pelo movimento do Universo. Embora esse som exista, nós o ignoramos e agimos como se só existisse o que escutamos. Lao-tzu nos ensina a aceitar humildemente que interpretamos apenas um pequeno papel no grande esquema do universo. Eu me sinto conectado a essas palavras. (…)”

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Por Antônio Teixeira

Ao pensar como a depressão se alterna com a exigência de satisfação nas rotas de felicidade que hoje se impõem na sociedade de consumo, ocorreu-me a imagem de uma outra intercalação. Eu pensei na alternância de asfalto e crateras das rodovias familiares a todos os mineiros que viajam de carro para o litoral nas férias, que nos obriga constantemente a fazer desvios e mudanças de faixas para chegar a nosso destino.

Conduzindo-me, então, por essa curiosa via, percebi que o problema, ali representado, adquire contornos ainda mais interessantes se pudermos supor, nessa mesma alternância, o caso nem tão inverossímil, sobretudo para quem viaja rumo ao sul da Bahia, passando por Nanuque, em que a extensão das crateras ultrapassa a extensão do asfalto. O que mais aborrece não são tanto os buracos, dizia-me, jocosamente, o motorista de caminhão com quem travei diálogo num posto de abastecimento; o pior mesmo são os pedaços de asfalto que sobram ali dentro. Somos obrigados a nos desviar constantemente dos restos de asfalto que permanecem nas extensas crateras que agora ocupam o lugar das estradas.
Não foi por acaso que resolvi tratar dessa versão extrema para pensar o problema das variações de humor. Ela me pareceu surpreendentemente condizente com a fala de um senhor de cinqüenta anos que se apresentou a mim como um deprimido grave, ao mesmo tempo em que se queixava de sua melhora clínica. Esse sujeito efetivamente depressivo, mas ao mesmo tempo fortemente apegado a sua desgraça, orgulhoso, por assim dizer, do pessimismo que enaltecia como sinal de profunda lucidez, um dia se pôs a comentar, com curiosa desolação, os efeitos de sua recente melhora de humor, na semana em que nascera o seu primeiro neto. “A minha tristeza”, ele me confessava, “é que a desgraça não é permanente e completa, há sempre alguma coisa que insiste em me deixar transitoriamente feliz.” A infelicidade do pessimista, como esse caso exemplarmente ilustra, é que as coisas não vão tão mal assim. Ele parecia perceber, naquele momento, que era preciso se desviar dos restos de contentamento que insistiam em se apresentar, de maneira sempre esparsa, na cratera da depressão em que ele havia configurado sua dor de existir.

Se adotarmos, então, ainda que provisoriamente, o ponto de vista desse interessante paciente, tão afeito a seu sombrio pessimismo, podemos afirmar que a posição depressiva, longe de ser um transtorno do funcionamento mental, como fazem crer os manuais de psiquiatria, pode ser efetivamente concebida como uma experiência de lucidez. Maria Rita Kehl acerta ao dizer que, a rigor, o sujeito depressivo não deixa de ter razão. O depressivo nos expõe, em sua cogitação ruminante, a inconsistência e a precariedade dos laços que nos prendem à ilusão da rodovia sobre a qual se apoia nossa intencionalidade subjetiva. Pois o depressivo bem sabe que o asfalto, para prosseguir nessa comparação, é, quando muito, a materialização transitória e perecível de um semblante de pista, uma improvisação precária e inconstante do que supomos ser um caminho, o qual, no fundo, não passa de um manto provisório de piche que logo se irá com as primeiras chuvas. O que existe, no fundo, como real, em definitivo, é a cratera que se revela na erosão contínua da pista, é a terra lamacenta que ao asfalto se mistura até torná-lo dela completamente indistinto, é o pó, como se diz no Eclesiastes, a que mais cedo ou mais tarde retornaremos todos.

Mas, seja qual for a margem de razão de nosso deprimido, é perceptível que a adoção desse modo de certeza implica numa tomada de posição particular, frente ao real, determinada como uma paixão pelo definitivo, pelo que sempre retorna na figura do mesmo. Tal como se ilustra no caso mencionado por Freud, em seu ensaio sobre a transitoriedade, do triste poeta que deprecia toda beleza da paisagem florescente do verão, por sabê-la fadada ao desaparecimento no inverno, o sujeito depressivo se recusa a usufruir do transitório por antecipar que só a extinção tem permanência. De sorte que quando ele reafirma, em sua retórica sombria, que, no fundo, a verdade da pista é a erosão da terra, que, no fundo, só resta a dispersão inexorável da poeira e a expansão contínua do buraco, o emprego recorrente da locução adverbial “no fundo” não deixa de chamar nossa atenção. Essa recorrência claramente revela sua necessidade sintomática de se ater ao real como constância inevitável do pior, sob as superestruturas ficcionais da linguagem que sempre variam. Ao tomar o real como o que se revela ineludível e constante, o depressivo aferra-se à certeza escatológica de que somente têm realidade os escombros que restam quando todas as operações do semblante terão finalmente se desvanecido.
Dessa paixão pelo resto, enquanto real definitivo, deriva, por sua vez, os efeitos de lassidão ou de negligência em relação a tudo que se assemelhe a uma pista, que convoque algum tipo de intencionalidade. Essa negligência, que na época medieval receberia dos pais da Igreja o nome de acedia, manifesta-se na dispersão ou na falta de adesão do deprimido que tudo observa descompromissadamente, sempre antevendo, nos esforços de construção da estrada, a poeira que jaz sobre a pista erodida. É importante, todavia, não confundir essa dispersão negligente com a atitude alheia do flaneur presente na lírica de Baudelaire. Ali, o comportamento errante do dandi traz consigo o desígnio secreto de se distinguir dos demais, de não pertencer à multidão com a qual se mistura. Já a negligência depressiva diz antes respeito à evasão da mente, descrita por Agamben, em “o demônio do meio dia”, como condição do sujeito que se tornou incapaz de perseverar ou de aderir a qualquer projeto, disperso no discorrer de fantasia em fantasia.
Pode-se, aliás, encontrar uma representação contemporânea dessa evagatio mentis nos Ensaios de Escola, de Teodoro Assunção, quando ele descreve a experiência do telespectador insone, armado de seu telezapping, que troca incessantemente de canal sem conseguir se fixar em programação nenhuma. Interessa-nos particularmente notar, na descrição dessa experiência múltipla, que o signo que se revela no leque absurdamente diversificado de programações da TV a cabo, seja mais uma vez a repetição do mesmo: “No interior (ou mais precisamente na superfície) de um universo variado de imagens e falas regido pela pressão mercadológica de produzir novidades, está a triste sensação de mesmidade. Dos fragmentos assim recortados, a memória que resta no dia seguinte é opaca e confusa e se assemelha estranhamente à memória de qualquer outra madrugada no zapping televisivo”.

A multiplicidade de informações variadas que a sociedade de consumo oferta ao culto contemporâneo da distração, resume-se assim na uniformidade monótona da massa de fragmentos marcada precisamente, como nota Teodoro Assunção, pela ausência ou nulificação de qualquer virtude informativa. Nesse sentido, se a finalidade da cultura de massa é efetivamente, como já observara S. Kracauer, a de nos manter ao máximo distraídos, amarrados à periferia das informações dispersas, para que não nos precipitemos no vazio dessa nulificação, a queda na condição depressiva, a seu modo, revela a falência ou a insuficiência desse evitamento periférico. Não deve, por esse motivo, nos causar espanto que a sociedade de consumo se recuse a recolher na experiência depressiva qualquer tipo de ensinamento, tratando-a ora como um transtorno a ser corrigido quimicamente, ora como um padrão adaptativo errôneo. A negligência do deprimido traz à tona a verdade subjacente ao culto da distração do qual a ideologia do consumo não quer saber, no sentido em que ela expõe, sob a vertente das direções múltiplas ali ofertadas, a mesmidade tediosa e nula da direção nenhuma.
Mas como pensar, então, desde a perspectiva psicanalítica, o problema da condição depressiva, seja no que diz respeito ao valor de verdade que essa experiência encerra, seja no que concerne à posição que a ela mesma adota em relação à percepção contemporânea da depressão? Diríamos, para irmos direto ao ponto, que a psicanálise efetivamente não reprova a depressão, como o faz o conjunto atual de nossa sociedade de consumo, que de fato ela concede sua margem de razão ao sujeito deprimido. Mas, não sem acrescentar que muito embora reconheça o valor de verdade que o sofrimento depressivo revela, no que concerne à condição de desamparo inerente ao ser falante, nem por isso a psicanálise deixa de formular um julgamento ético sobre a depressão. Esse julgamento ético diz respeito ao questionamento endereçado à lassidão depressiva, a propósito da paixão escatológica pelo mesmo, na forma da ruína, que o sujeito tomado por sua verdade pretende exibir no fundo de toda experiência.

Pois, ainda que a psicanálise consinta, até certo grau, com a posição depressiva, afirmando que efetivamente nada na vida e no mundo faça por si só sentido, que toda geração de sentido certamente se suporta de algum tipo de ficção discursiva contingente e provisória, ou ainda, que toda estrada, para voltarmos à ilustração do cartaz, nada mais é do que a materialização precária e variável de algum tipo de semblante, esse mesmo semblante nem por isso deve ser negligenciado pelo psicanalista. O semblante do qual o depressivo descuida, por ser variável, contingente e transitório, deve ser objeto de cuidado do psicanalista por essas mesmas razões. Se ao analista importa expor a natureza de semblante das determinações discursivas que definem o modo de existência do analisante, é pela razão prática de que somente ao trazer à luz a contingência dessas determinações que ele permite ao sujeito tanto desconstruí-lo, como se reposicionar mediante o agenciamento de novos modos de configuração. Mas isso não significa que a psicanálise desqualifique o semblante por ser necessariamente ficcional, contingente ou transitório, nem tampouco que ela pretenda, em sua prática, produzir um sujeito desancorado de qualquer relação ao semblante. Assim como, para Freud, seria um erro supor que a transitoriedade de alguma coisa implica sua perda de valor, como faz crer o jovem poeta pessimista mencionado em seu ensaio sobre a Transitoriedade, incapaz de usufruir da paisagem de verão por antecipar sua extinção no inverno, o psicanalista sabe, em sua prática, que é precisamente por ser ficcional, contingente e transitório que o semblante admite ser desconstruído, mas que nem por isso ele deve deixar de ser objeto de zelo e atenção. De sorte que, ali onde o deprimido, em sua paixão pelo permanente e definitivo, desapega-se dos valores ficcionais transitórios e contingentes, enunciando a conhecida fórmula deceptiva: isso não passa de um mero semblante, o analista responde com a advertência: atenção, frágil, esse lado para cima; isso pode ser desmontado, mas cuidado: parece ser um semblante banal, mas pode também ser um espécime raro de semblante, em vias de extinção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, G. [1942]. Estâncias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
ASSUNÇÃO, T. Ensaios de escola. Belo Horizonte: 7 Letras, 2003.
FREUD, S. [1915]. “Vergänglichkeit”. In G. W. Londres: Imago, t. X., 1999.
KRAKAUER, S. [1963]. O ornamento de massa. São Paulo: Cosac Naify, 200

Em maio de 2010, o Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro e a Seção-Rio da Escola Brasileira de Psicanálise organizaram o colóquio Figuras Lacanianas da Crueldade: Segregação, Ódio e Gozo, coordenado por Marcus André Vieira e Romildo do Rêgo Barros. Participaram do colóquio Antônio Teixeira e Ram Mandil, psicanalistas de Belo Horizonte, Ana Lucia Lutterbach Holck e Cristina Duba, psicanalistas do Rio de Janeiro, Cláudio Oliveira, filósofo da UFF  e o sociólogo Luiz Eduardo Soares. Do trabalho ali realizado, entre os textos apresentados e um vivo debate, tensionados entre o extremo da clínica psicanalítica e impasses da civilização, surgiu a ideia de se confeccionar um livro, Ódio, segregação, e gozo publicado pela Subversos em parceria como o Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro em 2013.

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Ódio, segregação, gozo, ato, capitalismo, burocracia… pontos limites que foram costurados por um fio de delicadeza.

Convidamos nossos leitores a revisitar estas figuras lacanianas da crueldade em um evento preparatório para o XX Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: trauma nos corpos, violência na cidade:

Cartaz Prep OSG 3